Da Arqueologia às Redes: Jamais Fomos Modernos?
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Aqui vamos refletir com Nilo Deyson.
“Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a
de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne
destas histórias confusas.” (LATOUR, 2013). As histórias confusas a que se
refere Latour são aquelas que se pode destacar, por exemplo, do agrupamento de
temas em um jornal, materializando quase casualmente perspectivas diversas
sobre temas diversos, sugerindo linhas de cruzamento entre olhares industriais,
políticos, científicos e outros. Na verdade, é exatamente essa espécie de
taxinomia que se desmancha, explicitando as linhas que a distinção de saberes
oculta obstinadamente. A rede cruza assim tramas que ordinariamente reviram
“[...] toda a cultura e toda a natureza.” (LATOUR, 2013).
Essa perspectiva aberta por Latour parece uma via possível
para ultrapassar os limites da arqueologia de Foucault, em direção a outras
abordagens metodológicas (STIVAL, 2019). Aqui interessa, nesse sentido,
exclusivamente a proposta de Latour em Jamais fomos modernos e a compreensão de
Foucault da arqueologia, particularmente em A arqueologia do saber (1969), e
não tanto o desenvolvimento das pesquisas de um e outro autor, porque esses
dois textos são referências para compreender a leitura que ambos fazem da
modernidade e o papel das ciências modernas na delimitação crítica – afirmada
por Foucault e recusada por Latour – de uma modernidade como conjunto crítico
específico. O que chamo de limite da arqueologia envolve justamente a
compreensão de que o sentido crítico da arqueologia (jamais abandonado
totalmente por Foucault, mesmo com o desenvolvimento de sua genealogia) implica
uma síntese “quase-transcendental”, nas palavras de Foucault, pois não
possibilita abrir mão de um princípio arqueológico, o qual funciona como
condição de delimitação de regularidades que circunscrevem uma episteme – no
caso, a episteme moderna. Os limites de sua arqueologia dizem respeito, nesse
sentido, ao estatuto da síntese que permite circunscrever uma episteme.
Trata-se, em Latour, de um modo diverso de apreensão dos
acontecimentos, que transpassa as ditas “formações discursivas”, não mais
segundo regularidades cujo nascimento e morte são cortes epistemológicos
históricos. A perspectiva crítica foucaultiana se dissolve em Latour, numa
espécie de análise de redes, a qual depende das relações, na medida em que
estas rompem as fronteiras porosas de uma suposta interpositividade e,
portanto, das formações discursivas descritas arqueologicamente. Não é por
acaso que a noção de rede é “mais flexível que a noção de sistema”, noção esta
que Foucault não deixou de usar para abordar sua arqueologia, na entrevista
concedida a Madeleine Chapsal, em 1966.
Pensamos no interior de um pensamento anônimo e que constrange, que é aquele de uma época e de uma linguagem. Esse pensamento e essa linguagem têm suas leis de transformação. A tarefa da filosofia atual [...] é a de trazer à luz esse pensamento anterior ao pensamento, esse sistema anterior ao sistema (FOUCAULT, 2001).
Latour afirma que o trabalho dos híbridos (digamos, por
enquanto, que são objetos não-específicos) permanece, para os modernos, oculto,
obscurecido pela separação estrita de “áreas”, de “ciências” ou, no limite, são
reportados a três grandes dimensões: “[...] estes trabalhos continuam sendo
incompreensíveis porque são recortados em três de acordo com as categorias
usuais dos críticos. Ou dizem respeito à natureza, ou à política, ou ao
discurso.” (LATOUR, 2013). Imediatamente, o leitor de Michel Foucault retira
seu autor desse perigo. Afinal, é verdade que o uso que faz Foucault de
“discurso” não se confunde com o interesse pelo “texto autônomo” e abriga jogos
de poder. Entretanto, na medida em que os acontecimentos, conforme Foucault,
afetam os conceitos e não os homens, de alguma maneira a esfera do discurso em
que Foucault situa sua reflexão está aquém dos “peptídeos em si” (LATOUR,
2013).
Essa diferença e suas consequências são o tema deste artigo,
o qual procura indicar o interesse da noção de rede na superação da arqueologia
de Foucault. Todavia, contrariamente ao que afirma Latour, isso talvez
signifique que, sim, fomos modernos – como testemunham as análises de Foucault,
Lebrun e Husserl, a respeito do estatuto das ciências modernas e, por isso, do
sentido próprio da modernidade. Dentre elas, as ciências humanas, que não por
acaso requeriam, em Foucault, um diagnóstico de seu sentido histórico balizado
em uma arqueologia.
Afinal, a arqueologia de Foucault traz à tona uma crítica ao
humanismo (MOUTINHO, 2004), invertendo a primazia do sujeito em primazia do
discurso (STIVAL, 2015). Contudo, embora ele use diversas vezes o termo “rede”
ou “trama” para falar das formações discursivas, em nenhum momento um arquivo
poderia ser tomado ele mesmo como “sujeito”, como ator, abrindo a materialidade
das coisas a uma existência autônoma e determinante, para além de matéria
tomada como suporte de efeitos discursivos possíveis. Latour tem razão, ao
observar que uma coisa é o acontecimento discursivo em que se articulam
enunciados a respeito da bomba de ar no século XVII; outra coisa é explicar ou
descrever “[...] o estabelecimento prévio de uma ligação entre Deus, o rei, o
Parlamento, e determinado pássaro sufocando no recipiente fechado e
transparente de uma bomba, cujo ar é aspirado graças a uma manivela acionada
por um técnico.” (LATOUR, 2013).
Foucault sustenta sua crítica ao “antropologismo”, em 1966
(As palavras e as coisas), a partir de uma distância intransponível entre “ser
do homem” e “ser da linguagem”: “[...] jamais, na cultura ocidental, o ser do
homem e o ser da linguagem puderam coexistir e se articular um com o outro.”
(FOUCAULT, 2002). Mesmo sem restituir a metafísica moderna. que apostaria na
questão do ser do homem (como formula Kant, “Was ist der Mensch?”), o fato é
que o “ser da linguagem” encerra uma dimensão discursiva autônoma, por assim
dizer, em relação à natureza e ao descreditado “sujeito falante”. A
materialidade do discurso está no enunciado enquanto fala, e a pergunta “quem
fala?”, seja no horizonte da resposta autônoma da linguagem, por Mallarmé, seja
na perspectiva exclusivamente interrogativa de Nietzsche (já que não se pode
suspeitar, por hábito gramatical, que haja aí um sujeito requerido), é como a
intuição da dimensão discursiva em seu limite.
Assim, embora simplifique o estatuto do discurso em
Foucault, ele não está longe das “vertentes semióticas” criticadas por Latour,
quando este nota, em esquema geral, que “Quer chamemos de ‘semiótica’,
‘semiologia’ ou ‘vertente linguística’, todas estas filosofias têm como objeto
tornar o discurso não um intermediário transparente que colocaria o sujeito
humano em contato com o mundo natural, mas sim um mediador independente tanto
da natureza quanto da sociedade.” (LATOUR, 2013).
A caracterização da episteme moderna por Foucault (desde o
final do século XVIII) sustenta-se, portanto, naquela distância, oposta à
transparência entre ideia e mundo, na era da Representação (séculos XVII e
XVIII). Logo, na modernidade, a dúvida tateante a respeito da direção pela qual
pensar “quem fala?”, e com isso discutir o ser da linguagem, é no final das
contas a principal condição interna – à modernidade assim definida – da própria
arqueologia. Se ela entrevê sua fraqueza, um limite próximo, é talvez porque se
instala, em seu modo essencial, no fundamento histórico de seu modo de ser. Por
isso, este artigo pretende sugerir, a partir do estatuto da ciência moderna,
que os limites da arqueologia podem ser questionados na direção das redes, que
cruzam o espaço discursivo moderno e também, talvez, os limites históricos de
uma episteme.
Afinal, o que é uma ciência moderna? Uma formação discursiva
autóctone, como sustenta a epistemologia? Uma formação discursiva situada em
uma trama interpositiva de discursos, como aquela que compõe as “ciências
humanas”, tal como descreve uma arqueologia? Uma tradução em rede de objetos e
sujeitos cujos fios só são desatados, abstraídos, em um trabalho secundário em
relação à mediação efetiva? É com base nesse horizonte de questões que se pode
discutir a própria ideia de modernidade como episteme (Foucault) ou como
Constituição a um só tempo vivida e incompleta (Latour). Isso significa que a
forma como se compreende a dispersão das ciências modernas implica um quadro
histórico ou outro, a partir do que se poderá pensar se efetivamente fomos
modernos e – mais importante – que perspectiva metodológica enseja uma espécie
de autoetnografia de nós mesmos. Portanto, o interesse em situar a perspectiva
de Foucault sobre o nascimento das ciências modernas, quanto à leitura à qual
ele se opõe (Husserl) ou que o sucede (Latour), está em marcar o sentido de
“modernidade” na arqueologia e como arqueologia, no caso de Foucault. Disso
depende a possibilidade de apontar o interesse da noção latouriana de rede face
à arqueologia foucaultiana.
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As Ciências Modernas Conforme a Arqueologia e/ou Segundo as Redes:
Desde 1966, é significativo o conjunto de polêmicas em torno
do tema da arqueologia. O volume Les mots et les choses – regards critiques
1966-1968 reúne considerações importantes sobre a arqueologia em Foucault, e
tantos outros trabalhos procuraram mobilizar esse termo, para delimitar
metodologicamente suas pesquisas, como, por exemplo, Alain de Libera e sua
Arqueologia do sujeito. Outro exemplo de análise que mobiliza diretamente o
pano de fundo da arqueologia é a de Gérard Lebrun, na medida em que este compreende
As palavras e as coisas como uma “anti-Krisis”, em referência, segundo ele, ao
adversário oculto do livro, Husserl.
Foucault e Husserl reconhecem uma transformação fundamental
na ordem da razão que abre espaço à dispersão das ciências modernas, embora
situem a questão em perspectivas históricas distintas. Trata-se do nascimento
das ciências positivas, o qual Lebrun também toma como acontecimento central
para a ciência moderna, situando-o em perspectiva histórica similar à de
Foucault. Lebrun elogia a dispersão das ciências como Faktum digno de
interesse, mobilizando a mesma periodização arqueológica de Foucault e mirando
sua flecha no adversário racionalista, Husserl, que lamenta essa mesma
dispersão das ciências modernas.
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O Quadro Moderno da Arqueologia:
Lebrun (2006) assegura, em seu artigo “A ideia de
epistemologia,” que, “[...] diante do Faktum das ciências positivas, existem
duas atitudes possíveis, uma de origem cartesiana, outra de origem
aristotélica.” Um representante da primeira atitude, racionalista por
excelência, é Husserl, que está nomeadamente no horizonte polêmico de Lebrun,
enquanto este assume a outra posição, designada por ele como aristotélica. A
atitude racionalista envolve um diagnóstico desse Faktum como uma lamentável
derrocada do ideal clássico de universalidade da razão. A outra atitude, aquela
que Lebrun procura explicitar, nesse artigo, envolve um diagnóstico menos
pessimista, ressaltando resultados “interessantes” dessa incontornável novidade
na história da razão.
Não há dúvidas de que Husserl lamenta o declínio do ideal de
universalidade da razão – universalidade que, para ele, deve ser recuperada,
respeitando-se a necessidade de ressignificação dessa unidade, imposta pelas
filosofias críticas de Hume e Kant. Husserl entende que Hume e Kant abrem uma
luta de autocompreensão desse processo – para Husserl, processo de declínio ou
fracasso –, tarefa na qual ele pretende tomar posição. Não se trata de uma
posição resignada, mas do projeto radical de redesenhar a universalidade da
razão. Projeto cuja dificuldade essencial está no Faktum anunciado por Lebrun:
a dispersão da Ciência em ciências particulares, a dissolução da mathesis.
É esse mesmo movimento histórico que Foucault descreve, ao
menos em um de seus “momentos” (sobretudo em Les mots et les choses, de 1966),
como passagem – ou melhor, como ruptura – da episteme clássica à episteme
moderna (final do século XVIII, início do XIX). Longe de refletir um declínio
na história metafísica da razão, a passagem de uma episteme a outra descreve,
para Foucault, o nascimento de uma nova configuração da racionalidade, na qual
as ciências positivas se tornam independentes, autônomas, o que tem uma série
de consequências decisivas. Uma delas, da qual Lebrun se ocupa no artigo “A
ideia de epistemologia”, é a própria possibilidade da epistemologia. O divórcio
irremediável entre ciência e metafísica fornece um objeto possível ao
epistemólogo, em função da autonomia das ciências particulares.
A filosofia clássica, representada pelo ideal cartesiano de
identificação de um método absoluto, se instala antes da derrocada da razão
pela formalização excessiva da racionalidade técnica. É nesses termos que
Husserl apresenta a história recente da razão – traçada do ponto de vista do
Espírito, particularmente em A crise das ciências europeias e a fenomenologia
transcendental, de 1936. Para Husserl, há uma crescente formalização do
conhecimento da natureza, formalização que ganha progressivamente autonomia em
relação ao modelo matemático, do qual Descartes é o representante maior. O
ideal de universalidade envolvido no modelo matemático justifica a
caracterização que Lebrun faz da atitude de Husserl como sendo “cartesiana”.
A matematização característica da época cartesiana significa
a consideração filosófica da ciência particular como meio e momento no
desenvolvimento metodológico do conhecimento, capaz, ao fim e ao cabo, de
lançar luz sobre as questões que, de acordo com Husserl, realmente importam,
questões “[...] decisivas para uma humanidade genuína” (HUSSERL, 2012).
Contudo, a partir da passagem do século XVIII ao XIX, o modelo matemático cede
espaço à formalização cada vez maior da racionalidade científica, transformada
então em cálculo de meios com fins de utilidade. Com a autonomia de cada
ciência particular, passa-se a operar exclusivamente no campo simbólico,
tornando a razão um jogo de signos. Esses jogos são o sintoma maior da
decadência da razão para Husserl, enquanto Lebrun os vê como índice do
interesse das ciências positivas. Para Lebrun, que a epistemologia esteja na
moda “[...] é a indicação de que as ciências só se tornam divertidas quando as
consideramos como jogos dos quais é preciso encontrar as regras e de que se
tornam interessantes apenas quando não mais cremos na Verdade.” (LEBRUN, 2006).
A moda da epistemologia é estreitamente ligada ao sucesso
das ciências positivas. Nesse sentido, o fortalecimento progressivo das
ciências particulares, na modernidade, parece contradizer o valor negativo
atribuído por Husserl à dissolução da mathesis, porque parece estranho, à
primeira vista, anunciar uma crise das ciências europeias precisamente na época
em que elas parecem prosperar. Porém, Moura ressalta, no artigo “A invenção da
crise”, que Husserl não ignora a prosperidade das ciências de seu tempo:
“Husserl apresentará as ciências positivas como exemplos de cientificidade
rigorosa: não existem problemas de fundamentos; não existem problemas de
método; os conceitos científicos são universalmente aceitos.” (MOURA, 2001).
O fracasso que Husserl descreve não diz respeito a
fundamentos, métodos ou conceitos, mas está no nível da “existência humana”, na
indiferença entre ciência e vida prática – pelo menos para o europeu moderno,
na compreensão de Husserl. Ou, mais precisamente, na indiferença da ciência em
relação à questão do sentido da existência humana. O ponto decisivo é a
impossibilidade de remeter as configurações particulares de enunciados, que
circunscrevem uma ciência, à significação que elas têm para a humanidade. Ao
invés da restrição da racionalidade ao jogo simbólico de uma ciência, Husserl
quer direcionar o olhar de seus pares à relação externa entre elas, capaz de
compor um todo com sentido, uma racionalidade una.
Nas palavras de Husserl (2012), ele se volta “[...] ao que a
ciência em geral tinha significado e pode significar para a existência humana.”
Husserl requer um lugar lógico, no qual esse significado existencial tome
corpo, a partir do qual possa dar sentido – platônico – à liberdade e à história
dos homens. Daí sua questão:
Pode o mundo, e a existência humana nele, ter na verdade um
sentido, se as ciências só admitirem como verdadeiro aquilo que é deste modo
objetivamente verificável, se a história não tiver mais nada a ensinar senão
que todas as figuras do mundo espiritual, todos os vínculos de vida que a cada
passo mantém o homem, os ideais, as normas, se formam e voltam a se dissolver
como ondas fugazes, que sempre assim foi e será, que a razão sempre terá de se
tornar o sem-sentido, a benfeitoria, uma praga? (HUSSERL, 2012).
A inquietação que se vê a um passo do irracionalismo, do
temido relativismo, precisa encontrar saída em uma reformulação do sentido da
unidade da razão.
Ao invés de colocar-se imediatamente a tarefa de
restabelecer a unidade da racionalidade, a fim de salvar o sentido da
existência da humanidade, Lebrun nota que a possibilidade da epistemologia,
aberta por essa transformação histórica, envolve uma noção de razão que, em si
mesma, é a impossibilidade daquele projeto unificador. Lebrun procura mostrar
como a epistemologia não era possível, no século XVII: “[...] haverá ao menos
um sentido da palavra ciência que impossibilitaria a epistemologia?” (LEBRUN,
2006). Ao responder “sim”, Lebrun (2006) sustenta que é possível, justamente,
“[...] dar o exemplo da ciência tal como a concebiam os pensadores do século
XVII.” Ele vê nas Regras de Descartes uma refutação da noção de especialista
como aquele que pratica uma ciência. Porém, desde o divórcio entre ciência e
metafísica, no final do século XVIII e início do século XIX, o lugar do
especialista parece irrefutável. A racionalidade envolvida na produção singular
de enunciados e regras, própria a uma ciência, é essencialmente diferente da
racionalidade que faz de cada ciência particular um meio, um exemplo para o
Método (LEBRUN, 2006).
O que tem de fracasso na era das ciências positivas? Aos
olhos de Husserl, essa positividade, desgarrada de toda metafísica, perde tudo
o que há de subjetivo e, com isso, o sentido da história humana, o sentido da
liberdade. “Meras ciências de fatos fazem meros homens de fato.” (HUSSERL,
2012). Husserl entende que a fenomenologia pode salvar o homem da
despreocupação científica com o sentido que unifica os homens em uma
“humanidade” racional. Porém, no discurso científico moderno, a noção de
verdade desloca-se de um critério ontológico a um critério lógico, situando a
questão da verdade na dimensão semântica. Essa é a dimensão que comporta o
olhar do epistemólogo. Olhar que é totalmente insuficiente, quando se pretende
encontrar a perspectiva a partir da qual se poderia estender a compreensão do
sentido à humanidade. Em Husserl, essa perspectiva não pode, certamente,
depender da postulação da unidade da mathesis (ela se torna possível por outro
movimento, designado pelo termo “redução fenomenológica”). A dissolução da
mathesis é o ponto central para o qual convergem Labrun, Husserl e Foucault.
Foucault (1966) também expõe a “des-matematização” como
sintoma da dispersão das ciências, deixando para trás o ideal de unidade da
mathesis cartesiana:
Na época de Descartes ou de Leibniz, a transparência
recíproca entre o saber e a filosofia era total, a ponto de a universalização
do saber num pensamento filosófico não exigir um modo de reflexão específica. A
partir de Kant, o problema é inteiramente diverso; o saber não pode mais
desenvolver-se sobre o fundo unificado e unificador de uma máthêsis (FOUCAULT,
2002).
A possibilidade de distinguir episteme clássica e episteme
moderna deve-se, em Foucault, à dissolução do ideal de universalidade produzido
pelo fato empírico da dispersão da Ciência em ciências positivas, incluídas aí,
agora, as ciências do espírito. É o caso da psicologia, com sua frágil unidade
de objeto. Foucault, entretanto, não faz uma valoração dessa ruptura
epistêmica, ao contrário de Husserl e Lebrun.
De todo modo, o fundamental, assegura Lebrun (2006), é que
agora a ciência, cada ciência, tem “[...] sua maneira própria de produzir
enunciados ou regras que possibilitam sua edificação.” É essa produção
“interna”, essa natureza “autóctone” das ciências modernas que Lebrun quer
ressaltar, na contramão da perspectiva de Husserl – contramão quanto à
valoração, não quanto à descrição da transformação histórica. Nenhum deles,
incluindo Foucault, está disposto a recusar o Faktum das ciências positivas.
A validade dos enunciados não se mede mais pelas coisas no
mundo, ontologicamente, mas logicamente, pela forma como são construídos os
enunciados de uma ciência, pela trama epistêmica de um discurso ou pela trama
interdiscursiva (como nas ciências humanas, segundo Foucault). Nesse sentido,
Lebrun ressalta a contingência das próprias ciências e, sobretudo, as “escolhas
e decisões” que participam da produção de uma ciência, vista então como um
“corpus de fórmulas”. Trata-se da passagem da verificação à produção de
enunciados como procedimento científico. Lebrun traz como exemplo o livro La
logique du vivant, de François Jacob, o qual se refere à biologia atual como
ciência “[...] ‘que não mais procura a verdade’, mas ‘constrói a ciência’.”
(LEBRUN, 2006).
É a transição do sentido da verdade da ontologia para a
lógica (embora a pretensão de Husserl se apoie na ideia de que a verdade se define
na relação da linguagem com o mundo, ou seja, em certa ontologia), ou a
autonomização da lógica em relação a uma ontologia cognoscível, que permite o
surgimento da epistemologia. Constitui precisamente aquela formalização que,
para Husserl, levou a cientificidade a abandonar o sentido da história. É a
dissolução da possibilidade desse sentido que Lebrun comemora, mais à vontade
que Husserl, nessa episteme moderna – mais claramente moderno que o
racionalismo husserliano gostaria de ser.
A questão de Husserl pode ser recolocada de diversos modos,
todos sempre reeditando uma alternativa incômoda. Como exemplo, vale passar
pela questão formulada por Giacoia (2014):
Assimilar os processos naturais a artefatos fabricados,
fazendo desaparecer o sentido tradicional de natureza – sempre definido como o
‘não fabricado’, como o que cresce por si mesmo (physis), diferentemente dos
produtos do produzir humano (tecné) –, tendo inserido a conditio humana num
campo de objetividade teórico e metodológico configurado pela moderna
tecnociência, não implicaria torná-la disponível para a racionalidade
instrumental, com a lógica de operacionalização de meios com vistas a fins,
privando-a, portanto, de sua autocompreensão ética tradicional, ligada a
valores universais humanistas como autonomia e dignidade?
O racionalismo de Husserl pode ser entendido como uma
maneira moderna do humanismo, entre outras, no sentido de procurar recuperar
para a condição humana um sentido ético final, em assimetria em relação à
“natureza”. É exatamente essa assimetria (Grande Divisão) que Latour permite
repensar, quando discute o sentido moderno que se estende à natureza,
alcançando uma reconfiguração das relações práticas que a crítica foucaultiana
ao humanismo deixa escapar, ao elidir o problema da natureza e o problema do
humanismo. A elisão dos termos natureza e cultura, em Foucault – cuja
arqueologia está no plano semântico da discursividade das ciências modernas –
deixa frestas importantes, ao contrário talvez da simetria latouriana, a qual,
de alguma forma, possibilita descrever naturezas-culturas em um devir de
relações abertas, em um fluxo de redes.
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Somos, Fomos ou Jamais Fomos Modernos?
Na arqueologia foucaultiana, as positividades (formações
discursivas, “ciências”) são descritas visando a surpreender a porosidade de
suas fronteiras, reencontrando não mais um fundo racionalista, ao modo de
Husserl, claro, mas um fundo comum na ordem do saber, no plano epistêmico, que
é a racionalidade discursiva. Não se trata de um fundo sintético que remetesse
à razão humana, mas de um fundo comum que remete à discursividade moderna, à
gramática histórica de sua época. Essa época, moderna, se destaca pela
desmatematização e pelo consequente nascimento das ciências positivas. Assim,
as duas noções de modernidade, husserliana e foucaultiana, se opõem como
soluções distintas, as quais, entretanto, aceitam um mesmo “problema”, um mesmo
Faktum: a dispersão das ciências modernas, o nascimento das ciências positivas,
uma autonomização das formações discursivas – isto é, agora nos termos de
Latour, a “purificação”.
Contudo, Latour alude à purificação como a face visível da
modernidade. “A Constituição moderna permite, pelo contrário, a proliferação
dos híbridos cuja existência – e mesmo a possibilidade – ela nega.” (LATOUR,
2013). Mas apresentar os híbridos – objetos que se dispersam entre esferas da
ciência, política ou moral modernas – como o “impensado” da modernidade dá
sentido a um só tempo a sua existência efetiva enquanto acontecimento e à
transgressão da modernidade. Por conseguinte, seria preciso discutir se,
efetivamente, como assinala Latour, jamais fomos modernos. Afinal, não é a
Constituição moderna que está sendo disputada e reivindicada como Faktum por
Husserl, Lebrun e Foucault? “Constituição” moderna refere-se à purificação que
torna objetos específicos, à distinção de ciências específicas e regiões
autônomas de saber.
Todavia, não parece ser possível recusar a existência
daquilo mesmo que se descreve como Constituição moderna. É o que Latour (2013)
pretende, entretanto, afirmando que “[...] o mundo moderno jamais existiu, no
sentido que jamais funcionou de acordo com as regras de sua Constituição,
separando as três regiões do Ser das quais falei e recorrendo, separadamente,
aos seis recursos da crítica.”
Latour refere-se a que regiões do Ser? Quais os seis
recursos da crítica? Há para ele um triplo jogo entre transcendência e
imanência – em relação à “natureza”, em relação à “cultura” e em relação a
Deus. Esse jogo triplo entre transcendência e imanência, sempre no modo do
paradoxo, seria colocado em prática pela Constituição.
Se “o trabalho de purificação deve permanecer distinto do
trabalho de mediação”, significa pelo menos que a purificação e a mediação
passam a ser, na proposta de Latour, justapostas, combinando a purificação e a
consideração dos híbridos que a contesta. Como a mediação contesta a
purificação, já que a torna procedimento analítico posterior ao modo de
existência dos eventos ou objetos, os enunciados formulados pela purificação
estão em um nível abstrato quanto à materialidade híbrida dos acontecimentos.
Assim, descrever as mediações revela algo mais do que se pode encontrar na
descrição purificada (enunciados já classificados na própria formulação).
Perdem-se as relações que são constitutivas dos objetos. Portanto, colocar em xeque
a linha que distingue o plano em que natureza e cultura (sociedade) se
confundem e o plano em que natureza e cultura se distinguem acarreta a
necessidade de rever, de baixo para cima, toda a estrutura da Constituição.
A questão é que não se pode mais justapor representação e
impensado, pois, quando este vem à luz, a representação altera-se
necessariamente. Latour apresenta sempre paradoxos que não se diluem e que
seriam pensados nesses termos, como ambiguidades. “Posso agora escolher: ou
acredito na Constituição moderna, ou então estudo tanto o que ela permite
quanto o que proíbe, o que ela revela e o que esconde” (LATOUR, 2013); “Uma
outra solução surge a partir do momento em que seguimos ao mesmo tempo a
Constituição e aquilo que ela proíbe ou permite” (LATOUR, 2013) (este seria o
“não-moderno” ou “amoderno”). No entanto, no caso geral da Constituição
moderna, considerar positivamente o que ela “proíbe” dissolve as linhas de sua
estrutura. E isso é algo que Foucault mostra com clareza, a partir da discussão
a respeito dos sistemas discursivos de exclusão. Não se pode ser aristotélico e
sofista, ao mesmo tempo. Ou, nos termos de Lebrun, não se pode fazer
epistemologia e reflexão racionalista sobre as ciências, ao mesmo tempo.
É verdade que há um elemento em jogo em Latour que está
completamente ausente, de partida, da arqueologia de Foucault. Não há nenhuma
noção de “natureza” em jogo na arqueologia, já formada como descrição de uma
estrutura discursiva (envolve prática, mas não natureza). Há materialidade no
plano dos enunciados, como na sofística:
E compreende-se por que a sofística, que conhecia por
ontologia apenas os jogos do ser e do não-ser, não conhece por lógica senão a
oposição do mesmo e do outro. É por isso que ela utiliza todos esses paradoxos
do pensamento pré-socrático, mas deslocando-os ao nível único do discurso
(FOUCAULT, 2011).
Outra coisa está em jogo na bomba de ar, no buraco de
ozônio, no aquecimento global e sua resposta material pré-discursiva.
Os híbridos multiplicam-se, de sorte a dificultar o trabalho de purificação, segundo Latour (2013):
Como Michel Serres, chamamos esses híbridos de
quase-objetos, porque não ocupam nem a posição de objetos que a Constituição
prevê para eles, nem a de sujeitos, e porque é impossível encurralar todos eles
na posição mediana que os tornaria uma simples mistura de coisa natural e
símbolo social.
Acontece que a mistura define esses quase-objetos, ou
híbridos, de maneira que manter a intenção de conformá-los em um espaço próprio
é alterar seu sentido existencial. Não se quer dizer com isso que há no
horizonte uma nova universalidade – trata-se antes de percorrer o sentido amplo
dos híbridos, cujos limites a própria pesquisa pode oferecer, se já liberada
das fronteiras científicas modernas. Para tanto, não é possível admitir a mania
moderna da localização que o autor sustenta, como se mudando a casa
alterássemos os moradores. De acordo com Latour (2013), “[...] ao desdobrar as
duas dimensões simultaneamente [moderna e não-moderna], talvez possamos acolher
os híbridos e encontrar um lugar para eles, um nome, uma casa, uma filosofia,
uma ontologia e, espero, uma nova constituição.”
Se não existe ainda como um conjunto específico de questões
(Foucault está longe de ser um “pós-moderno”), se não sabemos o que poderia ser
certo “pós-modernismo” nascente, por que temer o nascimento de algo depois da
modernidade, no modo de um monstro tão terrível quanto risível? Latour evita a
todo custo que já não sejamos modernos, o que implica – diante da morte da
Constituição, como qualquer outra, histórica... – insistir que, então, jamais o
fomos. Latour (2013) teme “[...] naufragar no pós-modernismo.” A maneira como
ele o caracteriza, a partir de Lyotard, é bastante conclusivo. Contudo, na
falta de um nome que indique o nascimento de um modo de pensamento vinculado às
redes e, nessa medida, desvinculado da constituição moderna, ao contrário do
que Latour ele mesmo pretende, vale recusar a pecha de que jamais fomos
modernos. Se não podemos claramente designar nosso presente, trata-se pelo
menos de notar que manter a estrutura paradoxal da modernidade, ainda que
enfatizando o que seria seu impensado, é algo recente, se não for algo novo.
Afinal, houve um Faktum, o que a ideia de Constituição atesta.
Tem-se algo novo, no sentido de que nasce um acontecimento
(objetos e enunciados, portanto), e a perspectiva metodológica que remete a
redes e híbridos permite vislumbrar essa forma nascente. Está nisso, aliás, o
interesse da noção de rede. Afinal, se “[...] os verdadeiros modernos sempre
multiplicaram, na surdina, os intermediários a fim de tentar pensar o
formidável crescimento dos híbridos ao mesmo tempo em que pensavam sobre sua
purificação” (LATOUR, 2013), então as redes não fariam mais do que retirá-los
da surdina. Acontece que a existência efetiva (Wirklichkeit) dos híbridos
acarreta a impossibilidade da purificação, e apenas por isso Latour pode
desejar para eles um lugar, um nome, uma casa, uma filosofia, uma ontologia e,
principalmente, uma nova constituição!
Se está em jogo uma antropologia simétrica por oposição a
outra assimétrica, é porque esta última pôde ser descrita em sua efetividade
(etnograficamente), pôde ver nascer a epistemologia ou o lamento moderno
husserliano. Se o “fomos” supõe um “nós” que atravessa duas “ontologias
históricas” distintas, isso já é um novo problema. Afinal, como observa o
próprio Latour (2013), a modernidade “[...] é muito mais que uma ilusão e muito
menos que uma essência.” Uma ficção. Uma ficção histórica efetiva a respeito de
modos de ser e, com isso, reflexivamente, a respeito de seu próprio modo de ser
histórico – sua “ontologia histórica”, além da qual não há fundamento. A
pergunta pelo ser é moderna, quando acusa seu esquecimento:
Quem esqueceu o Ser? Ninguém, nunca, pois caso contrário a
natureza seria realmente ‘vista como um estoque’. [...] As redes estão
preenchidas pelo ser. E as máquinas estão carregadas de sujeitos e de
coletivos. Como é que o ente poderia perder sua continuidade, sua diferença,
sua incompletude, sua marca? Ninguém jamais teve tal poder, senão precisaríamos
imaginar que fomos verdadeiramente modernos (LATOUR, 2013).
Imaginar que fomos verdadeiramente modernos? Aqui Latour
gira em falso, pois é preciso admitir acontecimentos, como a modernidade:
fomos, porque ela se define pela dispersão das ciências positivas, porque se
define assim, segundo ele próprio, por ocultar os híbridos (impensado). Afinal,
a modernidade não é a inexistência destes, mas a suposição epistêmica dessa
inexistência. Assim, pode-se assinalar que a modernidade envolve “nova
ontologia” apenas em relação ao modo de ser do sujeito moderno, no sentido de
uma ontologia histórica identificada à episteme moderna. Afinal, como ele
próprio realça, “[...] os modernos de fato diferem dos pré-modernos porque se
recusam a pensar os quase-objetos como tais.” (LATOUR, 2013).
A pergunta moderna, segundo Lebrun (2006), seria: “[...] que
pertinência pode ter essa escolha, uma vez que, diante da epistemologia, essa
ciência se apresenta como um texto, e suas normas reguladoras como um aparelho
retórico que os ‘praticantes’ dessa disciplina em particular aceitam, grosso modo,
aqui e agora?” Nesse sentido, o humanismo seria apenas uma forma moderna de
pensar ao avesso, numa “reflexão racionalista sobre as ciências”, o mesmo
diagnóstico da dispersão das ciências positivas. Isso implica aquela pergunta
que recorta um “aqui e agora” como modo específico do tempo, permitindo um
recorte arqueológico de uma época como a modernidade.
Ainda que não seja adequado qualificar Foucault como um
“pós-moderno” (se é que isso existe, já que parece verdade que “[...] o
pós-modernismo é um sintoma e não uma nova solução.” (LATOUR, 2013), ainda
assim Foucault parece compor o quadro resumido por Latour sob aquela etiqueta:
“Racionalistas decepcionados, seus adeptos sentem claramente que o modernismo
terminou, mas continuam a aceitar sua forma de dividir o tempo e não podem,
portanto, recortar as épocas senão através de revoluções que se sucederiam umas
às outras.” (LATOUR, 2013). Não é por acaso que uma das questões mais
frequentemente dirigidas ao livro As palavras e as coisas é a de saber o que
autoriza o ponto de vista de Foucault, em relação à própria episteme moderna.
Por conseguinte, só pode haver “não-moderno”, quando se está
face a acontecimentos desprendidos daquela maneira moderna de pensar seu
próprio tempo, de recortar épocas como quase-transcendentais. Não significa
vanguarda, crítica radicalizada nem fuga tresloucada (LATOUR, 2013) – significa
apenas conceder ao pensamento moderno a prerrogativa de sua própria
antropologia (assimétrica?), de sua própria descrição etnográfica (a dispersão
das ciências positivas e alguma interpositividade descritível), de sua
Aufklärung como pensamento sobre o próprio presente. Descrever redes possíveis
enquanto acontecimentos que não se subtraem (como impensados, necessariamente)
à Constituição é ultrapassar a modernidade, na medida em que o sentido
histórico da purificação é vivido por ela como elemento de uma racionalidade
específica, a qual abarcaria todo acontecimento no plano do saber.
A arqueologia permanece moderna, e o que resta dela na descrição
genealógica de Foucault bloqueia, como último respiro moderno, a efetiva
consideração metodológica das redes. As redes dependem de um efetivo
“nominalismo em história”, inclusive para descrever como acontecimento em rede
a autorrepresentação moderna. Apenas dessa forma o “relacionismo” de uma
antropologia simétrica no tempo se torna viável, redescobrindo, a partir da
diferença – “negação de uma relação” –, as relações que trazem consigo a
contingência das medidas que engendram cadeias particulares, relativas. “Se
deixarmos de ser totalmente modernos, ele [relacionismo] irá tornar-se um dos
recursos essenciais para relacionar os coletivos, que tentaremos não mais
modernizar.” (LATOUR, 2013). O princípio arqueológico que destaca para nós um
“Mesmo” é recolocado no tempo pela casualidade de sua gramática.
Apenas ultrapassando a arqueologia se pode ultrapassar a
modernidade. É preciso radicalizar o projeto de um “nominalismo em história”,
porque traços críticos da arqueologia são os últimos obstáculos para o mundo do
“vinculum em si”, mundo em que todo princípio sintético se desfaz em favor das
relações, das redes. O “nominalismo em história”, sublinha Foucault, seria uma
tentativa metodológica (embora ele atenue posteriormente a escolha um pouco
livre do termo “nominalismo”) de “[...] deixar de lado como objeto primeiro,
primitivo, dado, um certo número de noções, como, por exemplo, o soberano, a
soberania, o povo, os súditos, o Estado, a sociedade civil – todos esses
universais que a análise sociológica, assim como a análise histórica e a
análise da filosofia política, utiliza para explicar efetivamente a prática
governamental.” (FOUCAULT, 2004). Com isso, abandona-se a pressuposição de
“universais históricos” como essências que deveriam organizar, de partida,
qualquer análise. Nessa mesma direção, portanto, a proposta metodológica das
redes não pode impedir-se de reconhecer “nosso mundo” como um mundo “tão pouco
moderno”, uma vez que este “[...] deixou de ser moderno depois que substituímos
cada uma das essências por mediadores, delegados e tradutores que lhe dão
sentido.” (LATOUR, 2013).
_______________
Considerações Finais:
Os modernos “[...] não se sentem distantes da Idade Média
por alguns séculos, mas separados dela por revoluções copernicanas, cortes
epistemológicos, rupturas epistêmicas que são tão radicais que não sobrou nada
mais deste passado dentro deles – que nada mais deste passado deve sobreviver
neles.” (LATOUR, 2013).
Seria exagero subscrever esse diagnóstico de Latour,
considerando a filosofia de Foucault. Nem mesmo no quadro da arqueologia seria
preciso dizer que as rupturas epistêmicas significam que não “sobrou nada” de
uma época a outra. Todavia, a formulação é interessante, por destacar a
radicalidade do projeto arqueológico como projeto moderno, e a ambiguidade que
se pode reconhecer na arqueologia é talvez sintoma do paroxismo que a
caracteriza: último sentido da perspectiva crítica moderna, marcado por
fronteiras que, no entanto, precisam se reconhecer porosas. É por esses poros
que as redes atravessam a crítica e desenham a necessidade de pensar os
acontecimentos, em sua singularidade histórica, em sua genealogia, sem o crivo
de um sistema de condições de existência próprios de uma época. A arqueologia
parece, assim, o sintoma da implosão da idade moderna.
A temporalidade da perspectiva crítica da história é, afinal
de contas, uma escolha, um corte, uma arqueologia possível. Vale a observação
de Latour, então, segundo a qual está em jogo uma temporalidade que é “[...]
uma forma de classificação para ligar elementos. Se mudarmos o princípio de
classificação, iremos obter uma outra temporalidade a partir dos mesmos
acontecimentos.” (LATOUR, 2013).
Não se trata aqui de uma adesão imediata e completa ao
programa de estudos proposto por Latour, mas da consideração da perspectiva
metodológica implicada na noção de redes, em oposição à modernidade, para
refletir sobre acontecimentos posteriores aos anos 1980. A noção de rede enseja
colocar em xeque o tipo de princípio sintético que opera na arqueologia, sem
com isso restaurar o estruturalismo propriamente dito, nem uma história linear
ou dialética. Se podemos asseverar, com Latour (2013), que “[...] é a seleção
que faz o tempo, e não o tempo que faz a seleção”, então há algo da produtividade
do olhar que permanece; mas, ao contrário da visada arqueológica, não se
pretende reconhecer condições específicas de existência, conforme épocas do
saber. Nada que um nominalismo em história, uma genealogia, não possa também
realizar, caso leve a sério a constituição dos objetos pelos sujeitos e dos
objetos como sujeitos, constituição dos sujeitos pelos objetos.
Imagino, originalmente, um turbilhão rápido no qual a
constituição transcendental do objeto pelo sujeito se alimentaria, como por
retroalimentação, da constituição simétrica do sujeito pelo objeto, em
semiciclos vertiginosos e constantemente retomados, retornando à origem.
(LATOUR, 2013).
Essa espécie de perspectivismo antropofágico é o que permite
desprender a arqueologia de seu sentido crítico moderno e rumar em direção às
redes.
Foucault pode ser, talvez, efetivamente um etnógrafo da
modernidade – esta que, juntamente com o homem, desaparece como um rosto na
areia. Uma arqueologia parece ser o representante máximo da racionalidade
crítica moderna, capaz de descrever o fundo sintético, não como híbridos, mas
como função discursiva geral, própria de uma época específica – a modernidade,
necessariamente. Se levarmos a sério a discussão de Latour, a conclusão será a
de que uma arqueologia só poderia ser moderna, já que é a autodescrição mais
bem acabada da purificação crítica.
Jamais fomos modernos? Parece ser preciso responder que sim:
já se foi moderno, e já não o somos, quando o “impensado” da modernidade – os
híbridos – vêm à luz como força centrípeta para a razão (não apenas científica),
no século XXI. Se for isso, efetivamente, o que está em jogo, será preciso
repensar o “sujeito” em termos de redes – não por acaso, algo que aparece em
redes perspectivísticas, ou em redes virtuais, redes sociais, perpassando
inteligência artificial e corpos ciborgues. Afinal, a questão do sujeito não se
reporta mais à questão do homem, cujo rosto foi definitivamente apagado,
juntamente com a própria razão que o desenhou.
Abre-se então uma nova possibilidade para se pensar a noção
de “sujeito”, já que a dimensão discursiva que fechou a questão “quem fala?”,
numa impossibilidade antropológica (privilégio do ser da linguagem em relação
ao ser do homem), pode ser agora reaberta, na medida em que não se trata da
questão “o que é o homem?”, mas talvez da questão “quem é homem/sujeito?”
Boa Leitura!
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