Da superação á genealogia do pensamento - Nietzsche
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" Frases que
existem mas que você jamais leu, efetivamente, irão te causar admiração ou
espécie, não por ignorância, sim pelo caminho que a falta ou o conteúdo que te
toma o tempo, produzirá em você. "
Olá, amigo leitor do PORTAL LÍDERES!!!
Vamos aqui, alcançar um outro nível intelectual sobre o que
você imagina ser o tema que trago como título. Antes, pense:
"Existem coisas que você sabe e outras que mesmo sem
saber que se sabe, só se sabe que se sabia, quando aquilo ao qual você não
sabia expressar, se mostra naquilo que você lê, assim, você passa a um outro
nível de consciência. Saber direito as coisas que se sabia, é dominar os pontos
cegos não vistos nas estruturas onde esse saber se apresenta."
Diante daquilo que fomos levados a entender como filosofia,
a saber, a busca racional pela verdade, pelo sentido último de todas as coisas,
tudo aquilo que tange ao pensamento de Nietzsche parece não se enquadrar. O
filósofo em questão apresenta, do princípio, meio e fim de seu pensamento,
desde a sua forma, escrita até pelo conteúdo um jeito novo de fazer filosofia.
Seu pensamento não consiste numa busca pela verdade, já que está, na concepção
do filósofo, não existe. O expediente da razão para essa busca da verdade tão
pouco faz parte do filosofar nietzschiano. E a meta para a qual se caminha, de
acordo com a filosofia tradicional, o sentido e fundamento último das coisas,
da mesma forma para Nietzsche não passa de invenção, de mentira. Ora, parece
que o pensamento em Nietzsche vai na contramão do pensamento tradicional em
todos os sentidos, desde a forma, o método, até o conteúdo. E não poderia ser
diferente, pois o filosofar em Nietzsche consiste numa genealogia, ou seja,
numa maneira nova de se filosofar desde a sua base.
Nietzsche inaugura um pensamento que ultrapassa toda aquela
maneira clássica de se filosofar, para tanto, sente a necessidade de retroceder
milênios da história pregressa da filosofia, até toda a tradição de pensamento
que antecede a Sócrates. Pois, a partir de Sócrates o pensamento, na visão de
Nietzsche, passa a entrar em decadência, pela associação entre razão e moral
como critérios fundamentais do filosofar. Portanto, na visão de Nietzsche, a
partir de Sócrates temos o início da modernidade, por causa do expediente da
razão que passa a permear toda a filosofia, desde a epistemologia, a ética, a
antropologia e a cosmologia. Uma vez perfazendo esse caminho de superação do
vasto período contemplado pela modernidade, se recuará até o período dos gregos
antigos, os quais, de acordo com Nietzsche, representam a verdadeira filosofia.
A Grécia Antiga, para Nietzsche, é o berço de onde nasce a filosofia, lá todo o
pensamento respira a leveza e a inocência marcada pela relação entre os seres
humanos e os deuses. No entanto, da mesma forma em que há inocência há também
luta, de modo que a vida e o pensamento consistem num campo anímico. A única
ordem existente consiste no assenhorar-se, pela capacidade máxima de expressão
da força e consequente afirmação da vida, o fim para o qual tende a filosofia de
Nietzsche.
Nosso itinerário percorre três movimentos. Iniciamos
mostrando que o filosofar em Nietzsche consiste em apontar para um fundamento
novo, não mais aquele que, até então, permeou o pensamento metafísico, o Ser,
mas um fundamento sem fundamento, aparentado ao devir. Intitulamos este “Do ser
ao devir, um novo fundamento”. Na sequência, aprofundando o aspecto do devir
como fundamento do filosofar, chegamos ao entendimento de que o expediente
racional não serve mais para dar cabo a este novo empreendimento filosófico,
mas a intuição. Intitulamos este "Dá razão à intuição, uma filosofia de
totalidade”. Para, por fim, realizamos uma incursão sobre a meta a qual se
coloca a filosofia de Nietzsche, não mais aquela da busca da verdade e sim da
afirmação da vida, pela via das forças. De modo que a verdade torna-se
perspectiva, ou seja, um construto a partir do ponto de vista de cada um.
Intitulamos “Da verdade à perspectiva, o filósofo artista”. Em cada um destes
movimentos, mostramos a importância da filosofia de Nietzsche enquanto
expediente genealógico decifrador de enigmas e transvaloração de valores.
Do Ser ao Devir, Um Novo Fundamento:
A busca pelo fundamento é uma constante no pensamento
filosófico, tal como tem sido tradicionalmente compreendido. Este fundamento
esteve ligado a inúmeros elementos, desde aqueles da natureza, como é caso dos
pré-socráticos, como do sentido racional transcendente no caso dos clássicos e
a razão técnico científica na modernidade. Nos três exemplos acima o ser se
revela como aspecto fundamental, seja como ser da natureza, como ser da razão
transcendente ou ser da razão científica.
Nietzsche retrocede àquela problemática inicial que se
desprende de Parmênides e Heráclito, sobre o ser e o movimento, respectivamente
como fundamentos que subjazem a todos as coisas. Se em Parménides o ser, aquela
realidade estática, serve de fundamento a todas as coisas, para quem tudo o que
é fundamenta e dá sentido ao todo, em Heráclito é o devir (Werden), aquela
realidade em movimento o que serve de fundamento ao todo, de modo que o que
muda é o que serve de fundamento ao todo. “O desejo de destruição, mudança,
vir-a-ser, pode ser a expressão da força repleta, grávida no futuro" . O
vir-a-ser expressa o desejo de plenitude, como força que atinge a sua
culminância. Eduardo Nasser, ao refletir sobre a dinâmica do vir-a-ser na obra
de Nietzsche, diz que “[...] o vir-a-ser ganha o estatuto de ser, o que torna a
perenidade uma mera aparência.”
Diante destas duas possibilidades de fundamento ao todo,
Nietzsche opta pela de Heráclito. “Os tipos dos grandes personagens trágicos
são os grandes homens contemporâneos: os heróis esquilianos têm afinidade com
Heráclito.”
Em Heráclito, Nietzsche constata proximidade à figura do
herói trágico. Para o filósofo alemão, a mudança perpassa o todo, de modo que a
realidade como um todo é vir a ser. O movimento perpassa desde os elementos
componentes fisiológicos até os que compõem o pensamento. E é graças ao
movimento contínuo de todas as coisas que a vida, a realidade fundamental
enfatizada por Nietzsche, pode se afirmar. Werner Stegmaier, em seu comentário
a respeito da relação entre corpo, mundo e vida, diz que “O conceito de corpo e
de seu entrelaçamento com o mundo no si-mesmo conduz finalmente ao conceito de
vida.
A vida afirmada por
Nietzsche é a vida orgânica, corpórea. “A vida mesma nos recompensa por nossa
tenaz vontade de vida, por uma longa guerra, tal como a que eu, daquela vez,
travei comigo contra o pessimismo do cansaço de viver, e já por cada olhar
atento de nossa gratidão, que não deixa passar os menores, mais delicados, mais
fugazes presentes da vida”. A vida deve ser afirmada em todas as situações,
principalmente naquelas em que se manifesta cansaço dela.
Pois vida é capacidade de expressão de forças, e para que as
forças possam se sustentar é preciso do movimento, o seu motor e combustível
fundamental, “[...] a suprema intensificação de suas forças e, com isso,
nessa aliança fraterna de Apolo e Dioniso, o ápice das finalidades artísticas
apolíneas, assim como das dionisíacas”. Pela aliança entre antípodas, a força
se estabelece, a tragédia tem seu início e a vida se afirma.
Assim, pelo movimento, a força se manifesta por entre os poros de todos os seres que compõem o mundo, desde as pedras, plantas, animais até o ser humano. Neste último, as forças que transpassam os seus poros se expressam como vontade de potência, que é a vontade de criar, ou seja, o seu produto criador é a produção estética. De acordo com André Luís Mota Itaparica “Nietzsche concebe a vontade de potência como pontos de força dotados de um querer interno”. Consiste num querer interno que se plenifica a cada instante de intensificação das forças. A filosofia inteira de Nietzsche consiste numa concepção de forças. Forças estas que a todo instante buscam assenhorar-se, afirmando-se frente às demais, num jogo eterno de luta.
E é dessa luta que a
vida poderia ser sustentada. Assim, enquanto houver força há vida, caso
contrário há́ morte e inanição. Interessante notar qual o contexto em que
Nietzsche apresenta estas concepções de força: um contexto de fraqueza, doença,
degenerescência fisiológica, o que implica em decadência cultural. O próprio
exercício do filosofar é apresentado pelo filósofo como uma forma concreta de
manifestação de força contra a fraqueza. Por essa razão, o filósofo “[...]
levou à consideração de ‘uma nova saúde’, mais forte, mais espirituosa, mais
persistente, mais ousada, mais prazerosa do que todas as saúdes até agora.”
Numa concepção filosófica organicista, como a de Nietzsche,
o grande obstáculo a ser enfrentado reside na insistência de se instaurar
pressupostos próprios de modelos filosóficos metafísicos. Contudo, é curioso o
fato de como se pode refletir filosoficamente afastando-se de todo e qualquer
pressuposto. No caso de Nietzsche, talvez o único pressuposto possível é a
realidade de que o movimento, caracterizado pelo jogo entre oposição e
resistência, permeia a vida em sua totalidade. Por isso, a cada instante novos
desafios se desenham, fazendo com que um quantum de resistência se desprenda,
num processo sucessivo e infindável.
Toda atividade, enquanto tal, produz prazer – falam os
fisiólogos. Em que medida? Por que a força acumulada trouxe consigo uma espécie
de ímpeto e de pressão, um estado face ao qual o fazer é sentido como uma
liberação? Ou na medida em que toda atividade é uma superação de dificuldades e
oposições/resistências? e por que muitas oposições/resistências pequenas,
sempre de novo superadas, trazem consigo, de maneira leve e como uma dança
rítmica, uma espécie de comichão do sentimento de poder?
A configuração das forças que se depreendem desta sucessiva
luta se dá́ em forma hierárquica, em subjugados e subjugadores. Contudo, os
que hoje são subjugados amanhã poderão não ser e vice-versa. A ordem é buscar
continuamente o assenhoramento, pelo atingir de pontos sempre mais culminantes
de potência. Enquanto houver obstáculos a serem superados, haverá a
necessidade de se opor resistência; portanto, há força, num processo
infindável. Caso contrário, sem obstáculos, não há resistência, e,
consequentemente, não há força. Em última análise, é a forca o que move a
vida, o que a sustenta. Vida é força. Por essa razão, a vida é mantida com
as forças que lhe correspondem, na medida em que for imune à doença e gozar
de saúde. Mas não de qualquer saúde e sim de uma “[...] grande saúde, seria
preciso, em suma e infelizmente, essa mesma grande saúde!...”
Se tudo está em movimento, é inconcebível a Nietzsche todos
os constructos produzidos pela moral, principalmente aqueles que se depreende
da concepção cristã. Os diversos mandamentos e leis que se insurgem para
ordenar ao ser humano esquecer a vida humana terrena para se apegar àqueles que
se depreendem de uma concepção transcendente, como é o caso de concepções como
vida eterna, pecado, inferno, culpa. Desse modo, segundo Nietzsche, ao proceder
em esquecer as realidades deste mundo se impede com que as pulsões próprias das
inclinações humanas se expressem e, com isso, se nega a vida. Pois, a vida é
abertura, e por isso, não pode ser enquadrada em esquemas racionais
determinados, mas compreendida como movimento de pulsões que buscam se afirmar
em instantes de plenitude, portanto, cada instante é pleno, constituindo, por
essa razão a intuição.
Da Razão à Intuição, Uma Filosofia de Totalidade:
A razão tem sido o critério fundamental no que diz respeito
à dimensão do filosofar. Inclusive, diversos livros didáticos de história da
filosofia atribuem o início da filosofia a partir do advento da razão, o que
acontece, de acordo com essa leitura, com Tales de Mileto. Bem, se este é
realmente o critério da filosofia, então antes disso, ou seja, no período dos
gregos antigos não se tem filosofia. A mitologia grega, segundo esta concepção,
não se enquadra nos critérios da filosofia. Eis um dos grandes contra sensos, que
o filósofo alemão, acertadamente, pontua. No entanto, a maneira pela qual o faz
causa uma certa estranheza, pois resume a filosofia apenas a este período grego
antigo, de modo que o que vem de Sócrates em diante não passa de uma
“tartufice” da razão, uma mentira e engano. “A rígida e virtuosa tartufice do
velho Kant, com a qual ele nos atrai às trilhas ocultas da dialética, que
encaminham, ou melhor, desencaminham, a seu ‘imperativo categórico’”. Nietzsche
recorda Kant como um exemplo de fazer de sua razão moral, pelo imperativo
categórico, uma falsa piedade, uma hipocrisia. Por essa razão, alguns
radicalismos que, por sua vez, implicam em reducionismos são alvos de
suspeitas, razão pela qual assim é também reconhecido o filósofo alemão.
Nietzsche coloca sob suspeita tudo o que constitui o constructo da razão.
O velho problema teológico de ‘fé́’ e ‘saber’ – ou, mais
claramente, de instinto e razão – isto é, indagar se no que toca à valoração
das coisas o instinto merece autoridade maior que a racionalidade”, a qual
deseja que se avalie e se aja de acordo com motivos, conforme um ‘por quê’,
isto é, segundo a finalidade e a utilidade – ainda é aquele velho problema
moral que surgiu primeiramente na pessoa de Sócrates.
Mas qual o motivo pela qual sua oposição tão frontal contra
a razão?
Uma das razões para tamanha hostilidade à razão pelo
filósofo reside no fato da maneira pela qual a razão tem conduzido os seus
diversos trabalhos reflexivos. Qual seja, a de separar, selecionar, estabelecer
critérios sob a chancela da relação causa e efeito, com implicações diretas
sobre a questão dos valores, que se expressam, inclusive na relação culpa e
castigo.
Não somente o colocaram nas consequências de nossas maneiras
de agir - e como já́ é apavorante e contrário à razão entender causa e efeito
como causa e castigo! -, mas foram mais longe, e despojaram a pura contingência
do acontecer de sua inocência, com essa infame arte de interpretação do
conceito de castigo. Sim, levaram tão longe o destino, a ponto de mandar sentir
a própria existência como castigo.
Ora, se a razão procede em constranger, selecionar, separar, o faz segundo o ditame de determinados valores. Por essa razão, Nietzsche vê a necessidade de detectar a origem e finalidade de tais valores, avaliando a forma pela qual nasceram, se desenvolveram e frutificaram, o que leva a se constatar que cada valor é plasmado de acordo com determinadas avaliações.
A este procedimento original, que funciona como base de detecção de valores Nietzsche denomina genealogia – “[...] necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram”. Neste sentido, é aplicado um procedimento subsequente, o de estabelecer quais as avaliações das avaliações, até atingir uma que não pode ser avaliada, sendo esta não outra senão a vida.
“A pergunta é até que ponto é propiciador da vida, conservador
da vida, conservador da espécie, talvez mesmo aprimorador da espécie”. Diante
deste critério, Nietzsche privilegia tudo o que a ela se adequa e a afirma, à
saber, toda a dinâmica das pulsões e das forças. Por isso, numa dinâmica
pulsional, a razão constitui obstáculo, pois limita a dimensão das forças ao
proceder segundo critérios que separam, selecionam e estabelecem relações de
causalidade. Para tanto, a razão, de acordo com esta concepção, não pode
continuar servindo mais com critério, dela se deriva a “[...] moral como
décadence” da primavera de, mas um outro critério que, ao invés de operar
divisões, estabeleça unidade em torno a uma concepção de totalidade. E qual
seria este critério?
Nietzsche entende que a intuição (Intuition), diferentemente da razão, é capaz de operar a unidade que se espera para se refletir sobre a vida entendida enquanto uma concepção de forças. Esta unidade possibilita “[...] o homem intuitivo, digamos como na Grécia antiga, conduz suas armas mais poderosamente e mais vitoriosamente do que seu reverso, pode configurar-se, em caso favorável, uma civilização e fundar-se o domínio da arte sobre a vida”. A intuição é uma maneira de compreender a realidade da vida para além dos interditos que estabelecem divisões.
A concepção de um homem intuitivo é capaz
de penetrar com muito mais fecundidade e proveito naqueles meandros
intransponíveis pela razão. Por ela se é capaz de exercitar uma dimensão
bastante cara a Nietzsche, a dimensão psicológica, que vê um com olhar mais
profundo que o da razão, por ser um olhar que atinge, para além da
unilateralidade, a totalidade. Pela intuição se é capaz de estabelecer uma
genealogia de todos os valores que permeiam a vida, diagnosticando-os, e com
isso, neles constatando um dos grandes interditos que funcionam como obstáculos
para que a vida possa se afirmar. A vida afirmada é condição para
[...] o sábio como o homem da inalterabilidade,
impessoalidade, universalidade da intuição, como um e tudo ao mesmo tempo, com
uma faculdade própria para aquele conhecimento invertido; eram da crença de que
seu conhecimento é ao mesmo tempo o princípio da vida. Mas, para poderem
afirmar tudo isso, tinham de enganar-se sobre seu próprio estado: tinham de se
atribuir ficticiamente impessoalidade e duração sem mudança, desconhecer a
essência daquele que conhece, negar a tirania dos impulsos no conhecer e em
geral captar a razão como atividade plenamente livre, originada de si mesma;
mantinham os olhos fechados para o fato de que também eles haviam chegado às suas
proposições contradizendo o vigente ou desejando tranquilidade ou posse
exclusiva ou domínio.
A capacidade intuitiva leva em consideração elementos que escapam a uma análise puramente racional, como é, por exemplo, toda a dimensão que se depreende da fruição artística. A dimensão estética requer uma visão que se eleva para além da uma pura análise de dados concretamente situados. Trata-se de uma capacidade que compreende a interligação entre arte e ciência, “A capacidade para a clareza científica e para a transfiguração estética constitui, para Nietzsche, a arte filosófica.
O viver artístico, o criar supõe uma vontade de ultrapassar os valores
estabelecidos, “A vontade de potência. Ensaio de uma transvaloração de todos os
valores”. Ela supõe uma compreensão que
açambarque a realidade contemplada como um todo, mas ao mesmo tempo, com
profundidade e acuidade, com alcance ao mesmo tempo crítico e criativo, no
intuito de proporcionar um alargamento de visão. Nietzsche confidencia em uma
carta a Georg Brandes o quanto o povo alemão ainda carece deste alargamento de
visão.
Porventura você pensa que eu sou conhecido na pátria amada?
Sou tratado lá como se eu fosse algo um tanto extravagante e absurdo, o que por
enquanto não há nada necessário para levar a sério... Parece que eles farejam
que eu não os levo nada a sério, e como eu poderia também hoje onde o
“espírito alemão” se transformou em contradictio in adjeto.
Diante desta visão intuitiva aberta a uma totalidade somos
levados a nos perguntar qual o sentido que nela possui a concepção de
verdade.
O projeto nietzschiano traça uma maneira nova de conceber o
conhecimento, não é mais atrelado à busca de uma verdade, concebida enquanto
realidade imutável mas como algo que está em constante mutação. Dentro dessa
nova maneira de compreensão, já não tem mais sentido sequer falar a verdade.
Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama
em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais
inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais
mentiroso da "história universal": mas também foi somente um minuto.
Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais
inteligentes tiveram de morrer.
Aquilo que é verdade hoje amanhã poderá não ser, como vemos
nesta passagem inicial de Sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral.
Por essa razão, o critério de verdade dependerá do ponto de vista adotado pelo
que avalia; assim, dependendo do ponto, diferentes verdades se alcançarão.
Dentro desta nova concepção a verdade passa a ser perspectiva (Perspektive).
“Só que, certamente, a crença em sua verdade é necessária, como uma crença
de fachada e uma aparência que faz parte da ótica-de-perspectivas da vida”.
Nietzsche inaugura, mediante o seu perspectivismo, um jeito
novo de fazer filosofia, em que continuamente novas possibilidades são
incorporadas e reinventadas. A abertura ao criar marca o passo a uma
possibilidade de redimensionamento da realidade, com implicações em diferentes
áreas, desde a apresentação formal escrita até o conteúdo. Nietzsche, sonhou em
ser músico, contudo, não foi um bom músico, mas fez música com as palavras.
Seus textos escapam àquele discurso contínuo, próprio da maneira como a
filosofia tradicionalmente tem se manifestado, para assumir uma forma nova, em
que as palavras possuem musicalidade induzindo a dança. Uma dança que marca
continuamente um novo compasso, como é ensinada por Zaratustra.
Certo dia, ao anoitecer, Zaratustra andava pela floresta com seus discípulos; e, quando buscava uma fonte, eis que chegou a um verde prado, silenciosamente rodeado de árvores e arbustos. Nele havia garotas dançando entre si. Tão logo reconheceram Zaratustra, interromperam a dança; mas Zaratustra se aproximou com gestos amigáveis e lhes disse estas palavras: Não interrompa a dança, graciosas garotas! Não é um desmancha-prazeres com o olhar ruim que vos chega, nem um inimigo das garotas. Sou o advogado de Deus perante o Diabo: mas este é o espírito de gravidade.
Como poderia eu, ó leves
criaturas, ser inimigo das danças divinas? Ou dos pés das moças com belos
tornozelos? [...] Não vos zangues comigo, ó belas dançarinas, se eu disciplinar
um pouco o pequeno deus! Ele vai gritar, certamente, e chorar – mas é de rir
até quando chora! E com lágrimas nos olhos ele vos pedirá uma dança; e eu
próprio entoarei um canto para a dança: Um canto para dançar e zombar do
espírito de gravidade, do meu altíssimo e poderosíssimo Diabo, do qual dizem
ser ‘o senhor do mundo’ E eis o canto que Zaratustra entoou, enquanto Cupido e
as moças dançavam.
A dança é movimento, é força, é vida. Toda aquela força que
penetra os poros de todos os seres que compõem o mundo ao atingirem os do ser
humano passam a se expressar em forma de criação artística. Neste sentido, o
filósofo não é mais um simples filósofo, mas um filósofo artista. Aquele que
superou uma maneira metafísica de compreensão do mundo para assumir uma maneira
fisiológica, portanto, é fiel à terra, para emergir como além do homem. “Amo
aqueles que não procuram atrás das estrelas uma razão para sucumbir e serem
sacrificados: mas que se sacrificam à terra, para que a terra um dia se tome do
além-do-homem”.
Este filósofo assume o peso mais pesado, sabendo que sempre
é capaz pela superação, mediante a vontade de potência, a atingir pontos sempre
mais culminantes de potência.
Ademais, ele sabe que tudo o que viveu o tornará a viver um número interminável de vezes, pois tudo retorna – “[...] ó Zaratustra, quem tu és e tens de tornar-te: eis que és o mestre do eterno retorno – é esse agora o teu destino! (...) Vê, sabemos o que ensinas: que todas as coisas eternamente retornam, e nós sabemos com elas, e que eternas vezes já estivemos aqui, juntamente com todas as coisas.
O eterno retorno é o pensamento mais abissal que Nietzsche empreende, vivê-lo requer acolher o grande peso, não apenas sabendo, mas desejando que eventos promissores, mas também eventos difíceis, pesados retornarão. Viver cada grande evento desses requer despender um quantum de forças capaz de fazer com que se assuma o grande peso, não apenas acolhendo o fato, mas o amando, daí a fórmula ética de Nietzsche: amor fati. “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda eternidade.
Não meramente suportar o necessário, e menos ainda
dissimulá-lo - todo idealismo é mendacidade diante do necessário -, mas
amá-lo...” Diante do grande peso é preciso amar o fato, tal como se apresenta,
e isso só é possível mediante a perspectiva do filósofo artista. Aquele que faz
do grande peso do fato uma obra de arte, inaugura assim uma concepção estética.
Bernard Magnus diz que o ideal sugerido por Nietzsche, “[...] é a experiência
do amor fati [amor pelo destino], na qual a pessoa ama sua vida, com todos os
seus defeitos, tal como é”.
Diante de quadros tão desafiadores, fruto de eventos
aparentemente onipotentes, se depreende, em todo o instante, uma carga de
força capaz de se reinventar, ou seja, a sua capacidade de criar. Portanto, a
resposta dada pelo que se supera e redime é a criação artística. A arte é o
antídoto contra todo o conformismo passivo, contra todo o pessimismo e
sentimento de estar vencido. A arte ativa o desejo e a vontade de mais, de
nunca estar saciado, de dar sempre um passo além, de afirmar a vida. “O mesmo
impulso que chama a arte para a vida, como a complementação e perfeição da
existência que induz a continuar a viver”.
Nietzsche viveu estes desafios com relação ao seu quadro
clínico; diante de suas terríveis dores de cabeça e estômago, teve que
reinventar o seu dia a dia, seja pela produção intelectual e caminhadas, como
pela busca infindável por ambientes que lhe fossem favoráveis ao seu estado
de saúde. O ciclo do retorno para ele, neste quadro clínico, se mostrou
tenebroso, o que ele assumiu com firmeza e disposição afirmativa, tendo como
resultado um produto intelectual profundo e profícuo. Assim, sua resposta
diante do peso aparentemente intransponível do fatum foi a redenção, pela sua
capacidade estimulada em criar, transpor e reinventar.
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