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Verdade Poder & Fake News

 

Foto: Freepik


Segundo Foucault por Filósofo Nilo Deyson

 





Amigos do PORTAL LÍDERES.

Resolvi registrar para vocês um conteúdo de filosofia com a realidade. "A Verdade, Pós-Verdade, Notícias Falsas e Poder: Foucault e as Fake News”.

 

O vocabulário político, sociológico e, também, filosófico, foi alargado na última década com a introdução, que parece definitiva, do termo fake news, ou seja, notícias falsas. Se o significado é bem antigo, em meados da década de 2010 a expressão fake news ganhou o mundo e se adquiriu grande importância, catapultada que foi por dois eventos políticos: o processo eleitoral estadunidense, que confirmou Donald Trump como chefe de estado da maior potência global, e o Brexit, termo que designa o tumultuoso processo de abandono da União Europeia por parte do Reino Unido (Inglaterra, Irlanda do Norte, País de Gales e Escócia) — ambos em 2016, ano em que o termo post-truth (pós-verdade) foi escolhido como palavra do ano pela Universidade de Oxford.

 


Nesses processos políticos houve forte onda de boatos e de informações falsas, utilizadas como expedientes na tentativa, em ambos os casos bem sucedidas, de se obter vantagens políticas ou objetivos almejados por setores dessas sociedades. O Brasil não passou incólume ao fenômeno e, se ele já se mostrava nas eleições municipais de 2016, foi no pleito presidencial de 2018 que desabrochou. A crescente ubiquidade da internet e das redes sociais às quais ela se liga teriam potencializado o fenômeno, que agora chega mesmo a ameaçar a lisura dos processos eleitorais em diferentes partes do globo, a ponto dos responsáveis por essas redes serem chamados a prestar esclarecimentos diante das autoridades e se comprometerem a viabilizar mecanismos de luta contra as notícias falsas.

 


As fake news suscitam indagações de variadas ordens, inclusive filosóficas, caso este que ora nos ocupará. Dentre estas, pode-se citar elementos de filosofia política, como o papel das redes sociais na constituição de uma nova ordem social; epistemológicas, visto que há uma ligação entre conhecimento verdadeiro e conhecimento falso; e até mesmo ontológicas, dada as variações que os termos falso e seu contrário, verdadeiro, implicam no que tange à apreensão do ser.

 


No presente artigo nos propomos a debater a questão das fake news à luz da filosofia de Foucault, indicando como o pensador francês poderia pensar o ponto, especialmente a partir de seu conceito de verdade e das ligações que esta noção entreteria com o poder político. No debate público é comum que se ligue a difusão das fake news com uma posição filosófica específica, apodada de pós-modernismo, corrente ou atitude com a qual facilmente Foucault é identificado, por pensadores como David Harvey e Perry Anderson. Assim, o demérito das fake news é apontado como tendo em Foucault um de seus gurus espirituais, visto que este teria preparado o terreno, nos dizem alguns autores, ao minar valores e crenças até então consolidadas no Ocidente, como verdade, ciência e conhecimento objetivo.


 

À guisa de introdução, elaboraremos breve histórico do conceito de verdade até sua captura pela filosofia analítica nas mãos de autores como Pascal Engel. Em seguida, daremos indicações sobre o que é a tão propalada pós-verdade. Na sequência, indicaremos os conceitos de verdade em Foucault para, por fim, munidos do anteparo necessário, debater se realmente o mesmo é um esteio, mesmo que a contragosto, da difusão crescente das notícias falsas ou se seu pensamento permite abordá-las e liga-las àquilo que realmente está em jogo: poder, domínio e dinheiro.

 

 A Questão da Verdade:

 


Chega até mesmo a ser um truísmo apontar que a verdade é um problema filosófico e, mais do que isso, uma questão que persegue qualquer pensador, cientista ou mesmo técnico. Descobrir a verdade — não são estes traços e travos que poderiam caracterizar todo o empreendimento humano? A ciência, a religião, os canais de informação, os livros, seu amigo, todos dizem asseverar a verdade.

 


Caso sigamos uma tradição consagrada e situemos o surgimento da filosofia na Grécia Antiga, encontramos também a verdade tematizada. Em grego, o termo para verdade é alētheia (ἀλήθεια). É uma palavra corrente, que possui um significado pré-filosófico. Isto porque em sua composição entram dois termos, o alfa privativo (ἀ-) e lēthes. Este último indica, na mitologia, um rio dos reinos inferiores, onde as almas, após se banharem, se esqueciam de suas vidas prévias, uma temática que ainda Platão soube se valer. Como termo separado, lēthē indica esquecimento, e se liga ao verbo lanthanō (λανθάνω), que significa não ser percebido. A alētheia indicaria originalmente, pois, o desvelamento daquilo que jaz. Ela não se oporia, como mais tarde se consagrou, ao falso, mas ao oculto, e desvelar este seria apanágio dos poetas e dos adivinhos, servos do anax (imperador), os senhores da verdade de uma civilização em vias de dar à luz a filosofia e as ciências.

 


Mas, mais tarde, o termo foi recuperado pela filosofia ganhando outros contornos. Parmênides trata em seu poema sobre certo caminho da verdade, identificado com o ser ele mesmo e cujo conhecimento se dá por intermédio da deusa; assim é que Szaif fala de uma concepção onto gnosiológica da verdade. Se o conceito foi debatido por outros pensadores pós-parmenidícos, é importante citar Protágoras e seu relativismo, que tiram o peso ontológico da verdade, em benefício da asserção de que o homem é a medida de todas as coisas, pensamento este adequado à sofística e aos jogos de poder no qual ela se imiscuir.

 


Mas será na pena de Platão e, mais ainda, de Aristóteles que o conceito ganhará a sua forma canônica, na qual foi largamente discutida na história do pensamento ocidental. Platão trabalha o conceito de verdade em relação a sua teoria das Formas, indicando uma imagem originária (Urbild) das coisas; para se alcançar a verdade, seria necessário um esforço de purificação. Em outros textos, ele vai trabalhar certas problemáticas dessa definição, textos como o Sofista e Teeteto. Uma dessas problematizações é, por exemplo, a questão de saber se a falsidade pode ser expressa, ponto espinhoso na teoria acima exposta. Nesses textos, Platão se aproxima de uma definição posteriormente trabalhada por Aristóteles: uma expressão é falsa se o que diz não é o caso, e verdadeira se o que diz é o caso. No diálogo Eutidemo, Platão aborda a noção de que um pensamento concorda com a coisa na medida em que descreve como ela é, que funciona como formador da efetividade.

 


Aristóteles, a seu turno, fornece uma definição proposicional da verdade na Metafísica: a verdade é aquilo que descreve o ser como ele é, falso é aquilo que não o descreve como é. Mas ele fala também de uma verdade pré-proposicional quando aborda, por exemplo, que a rosa é vermelha em algumas passagens, o que indicaria uma constatação dos sentidos. Se bem o pensamento de Aristóteles seja um aprofundamento de certas intuições de Platão, há diferenças. O Estagirita trabalha também a verdade em seus textos de ética, em um debate aberto com Platão para quem a verdade seria uma virtude (SZAIF, 2006).

 


Com a definição de Aristóteles chega-se à forma mais debatida da verdade na história do pensamento ocidental, forma esta que será desenvolvida por Santo Tomás de Aquino, no famoso adágio Veritas est adaequatio rei et intellectus, “a verdade é a adequação da coisa ao intelecto”. As fontes de Aquino, além de Aristóteles, são Agostinho, Isaak Israeli (um médico e filósofo judeu dos séculos IX-X) e Santo Anselmo. Agostinho recupera as noções dos mestres gregos, ao mesmo tempo em que se apropria de passagens bíblicas para uma noção da verdade que se enquadre nesses pressupostos. Israeli desenvolve as noções da verdade como adequação. Já Anselmo fornece a famosa noção da verdade como retidão, uma noção ética, apoiada também nas Escrituras e, como não poderia deixar de ser, nos Padres da Igreja Católica.

 


De todo modo, a teoria que Aquino fornece na forma mais bem acabada, conhecida como teoria da correspondência (já que coisa e pensamento correspondem na expressão da verdade), teve longa carreira e foi debatida por inúmeros autores. Kant foi um dos que lhe fez uma objeção mais séria, na medida em que afirma, no âmbito de sua filosofia transcendental, que, se a verdade é a correspondência entre a coisa e o intelecto, e eu somente posso conhecer a coisa através do meu intelecto, então a verdade seria a correspondência de meu intelecto consigo próprio. Não é só isso, venham com Nilo Deyson e compreenda com muita atenção em cada detalhe.

 


Por suscitar este tipo de problemas, autores como Frege se propuseram a elaborar outra teoria da verdade, que ficou conhecida como minimalista ou deflacionista. Frege, como se sabe, está na raiz da filosofia analítica e, desta feita, suas proposições encontraram especial eco nos países onde essa tradição grassa. Para esta teoria, já aclimatada com a lógica simbólica contemporânea, afirmar que p é verdade e asseverar somente p não guarda diferenças profundas; a desvantagem no primeiro caso é o entulho metafísico que advém com a noção de verdade, razão pela qual se deve considera-la menos importante do que normalmente se faz. Ou seja, entre simplesmente afirmar a proposição ou afirmá-la enquanto verdade, a única diferença são as implicações complicadas que o segundo caso torna patente.

 


Além da noção deflacionista, que deu origem a muitas outras teorias, como a de Dummet, e mais recentemente de Engel (para ambas e muitas outras, consultar, vale citar Nietzsche, o qual estabelece em alguns textos uma crítica da noção de verdade. Esta seria uma espécie de mentira, mas uma mentira que seria útil para alguns. Nietzsche diz que:

 


O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.

 


Essa postura nietzschiana em relação à verdade — tornando-o mundana, sem nenhuma conotação metafísica — será importante para os trabalhos de Foucault. Pode-se resumir a história do conceito, segundo Enders e, da seguinte maneira: uma posição pré-platônica, uma concepção platônico-aristotélica, cujo cimo é São Tomás e as visões deflacionistas desenvolvidas a partir dos trabalhos de Frege sobretudo na tradição analítica. No conjunto da tradição ocidental, as críticas de Nietzsche, que ligam verdade e poder se sobressaem, e serão retomadas por Foucault.

 


Tanto à esquerda quanto à direita do espectro político há acusações contra os adversários de propagar fake news. Ou seja, se há um uso ostensivo desta acusação, parece que ninguém quer estar ao lado da mentira ou ser identificado com a mesma.

 


Pode-se pensar que pós-verdade seria apenas outro nome para mentira. No entanto, a definição do termo é um pouco mais refinada. Por pós-verdade se indica não somente um descuro em relação aos fatos verídicos, mas a utilização sistemática e intencional de determinados fatos como forma de obter ganhos políticos. Enquanto a preocupação com a verdade parece ter orientado praticamente toda a tradição ocidental, científica e filosófica, como se houvesse algo que subjazesse ao mundo e que estaria esperando para ser descoberto e formulado em leis gerais, inclusive em política, onde se esperaria que os postulantes aos cargos se preocupassem em formular estratégias de ação segundo evidências científicas, a era da pós-verdade indica antes que essa preocupação deixou de ser central. Em um momento social marcado pelas redes sociais, verdadeiro campo de batalha por curtidas, visualizações e compartilhamentos, a emoção tornou-se pedra angular da política. Manipular as emoções dos cidadãos, ligando adversários à posições indefensáveis, como a pedofilia, por exemplo, ou afirmar que “mamadeiras eróticas” seriam distribuídas às crianças, como no caso brasileiro — tudo isso pretende ligar com o lado mais irracional das pessoas, não importando se se trata de verdade ou não; o que importa é a emoção desencadeada, não a atenção aos fatos.

 


A noção de verdade que os autores sobre fake news que consultamos se valem parece ser a tradicional Veritas est adaequatio rei et intellectus, que, se bem pode ser problematizada, guarda um valor próprio, além de ser de fácil intelecção, quase intuitiva. Um fato ocorre ou não e assim deve ser noticiado. Pode-se criticar o viés da mídia mainstream, ela mesma ligada a determinados interesses em uma sociedade marcada por conflitos. Os donos das redes de televisão, dos grandes jornais, dos portais de internet não são neutros; mas, em tese, existiriam os editoriais dos jornais escritos, por exemplo, para dar vazão à opinião do veículo em questão. Na prática, a manipulação das notícias — escolhendo, por exemplo, o que é digno de ser noticiado ou, quando se entrevista especialistas, quais serão entrevistados — indica que a mídia propugna determinada perspectiva.

 


Mas o fenômeno das notícias falsas e da pós-verdade vai além desse mero viés da mídia. Órgãos tradicionais de imprensa trabalham, bem ou mal, com determinados parâmetros que as notícias falsas buscam quebrar. Elas são promovidas por sites suspeitos, blogs enviesados ou canais de youtubers cuja principal preocupação é gerar visualizações e, desta feita, serem remunerados pelas respectivas plataformas. Nesse sentido, as grandes companhias de tecnologia da informação — como Google, Facebook e Youtube — estão intimamente relacionadas às notícias falsas e à pós-verdade, visto que é através desses meios que esses fatos alternativos são veiculados. Como geram muitas visualizações, pelo próprio conteúdo especialmente pensado para nos atingir emocionalmente, as notícias falsas geram lucro para as giant techs, e, se levarmos em conta o lado puramente econômico, não haveria interesse real dessas plataformas em combater a propagação de notícias falsas. Os algoritmos que governam a internet são insensíveis à verdade; basta que um conteúdo se encaixe no perfil que eles formaram de nós através do Big Data para que esse conteúdo nos seja direcionado ou proposto. Isso cria as famosas bolhas de internet onde nossos perfis são fechados em círculos daqueles que concordam conosco, criando uma falsa sensação de veracidade mesmo para as opiniões mais estapafúrdias.

 


Essa lógica de funcionamento das redes sociais e dos mecanismos de busca é, portanto, diretamente responsável pela verdadeira pandemia de notícias falsas. Além disso, negócios espúrios, como bots ou disparos em massa de mensagens, também devem ser relacionados. Notícias falsas, pós-verdade e Big Data se relacionam em uma corrente de ferro difícil de ser quebrada. Apesar disso, nenhum postulante a um cargo político parece querer se colocar como propagador das fake news; ao contrário, buscam levantar desconfiança em relação aos meios tradicionais de informação e chegam mesmo a se orgulhar de ter outros meios de se informar, meios estes que, conforme mostrado, estão vinculados a um projeto de poder. Não importa se a informação é verdade — importa que ela sustente articulações políticas e estratégias específicas.

 


Até o presente momento, as notícias falsas tem, sobremaneira, um lado do espectro político: a extrema-direita. Financiada por alguns dos homens mais ricos do mundo, como os irmãos Koch ou Luciano Hang, no Brasil, essa direita defende um projeto de civilização anti-iluminista, ou seja, reacionário em sentido próprio. As conquistas da ciência moderna, ao mesmo tempo em que são fartamente utilizadas através dos mecanismos de tecnologia da informação acima discriminados, são, também, apontadas como perniciosas. Assim, questiona-se o formato da terra, uma discussão cientificamente ultrapassada e que, curiosamente, é feita através da internet mais hodierna, tornada possível por satélites que orbitam a Terra; tenta-se impor como teoria científica o criacionismo, que deveria ser ensinado nas escolas, segundo nos dizem; defende-se que vacinas causam autismo, baseado em um estudo provado como falso, o que gerou explosões de casos de sarampo ou paralisia infantil, por exemplo; ou defende-se que não há aquecimento global causado pelo homem, o que, caso consiga conquistar a maioria das mentes, terá consequências nefastas no futuro.

 


Mas as notícias falsas são mais prosaicas. Já em 2008, por exemplo, quando o Facebook e o Google engatinhavam, espalhou-se pela internet que Barack Obama não seria estadunidense, mas queniano. Ou, aqui no Brasil, o famoso filho de Lula, o qual seria milionário dono de uma importante rede de frigoríficos. O que se quer alcançar não é a verdade, mas arrebatar aqueles com posicionamento semelhante em uma unidade onde tudo que importa é poder político para tocar uma agenda anti-iluminista.

 


Alguns autores apontam como a era da pós-verdade teve seus primórdios nas campanhas levadas a cabo por indústrias do cigarro contra as evidências científicas de que seu produto causava câncer. Essas empresas financiaram think tanks com cientistas ou pseudo-cientistas focados em afirmar na mídia que não havia evidências, que as provas eram inconclusivas etc. Com isto, criou-se um clima de dubiedade; já que há duas opiniões equivalentes, posso escolher a que mais me apraz. Esse sentimento de dubiedade é o que visam os propaladores das notícias falsas, especialmente sobre o aquecimento global, a fim de se afirmarem como sujeitos de direito da verdade do mundo, ou seja, de que suas posições correspondam aos fatos ou que, ao menos, haja fatos alternativos, uma posição que roça o relativismo.

 

Exatamente por relativizar as noções de verdade, objetividade e ciência é que esses mesmos autores apresentam o assim chamado pós-modernismo como antecedente cultural da pós-verdade. Autores como Lyotard, Foucault e Derrida, em uma linhagem nietzschiana, teriam colocado em xeque os valores por excelência do Iluminismo, como a confiança na capacidade da razão para administrar e vencer nossos males, em benefício de uma relativização desses valores. Devemos acrescentar, por nossa conta, a influência de Heidegger, autor ligado muito de perto ao nazismo, cujo pensamento vem alimentando essa mesma extrema direita. Em certa altura da Carta sobre o Humanismo, Heidegger afirma que há muitas formas de conhecer o mundo, não só a razão . O que poderia ser um romantismo redivivo, conforme veremos mais abaixo, inspirado pela exaltação do sentimento em um sentido poético, na verdade alimenta o fanatismo religioso e a crença em verdades reveladas. Na raiz da pós-verdade, está uma tentativa de desconstrução das forças que venceram a Segunda Guerra Mundial (comunistas e liberais) em benefício da parte perdedora, o nazifascismo. E é justamente uma espécie de criptofascista, com Trump, Bolsonaro ou Putin, ou de posições abertamente fascistas ou nazistas, de organizações como KKK, que vem alimentando a explosão de notícias falsas que vivemos.

 

Sabe-se do papel que desempenhou o romantismo na formação do nacionalismo, criando passados idílicos e a unidade nacional, até mesmo no Brasil com as teorias e filosofia de um Gonçalves Magalhães, homem forte do Império, ou com os romances de Alencar, que louvam o passado indígena do Brasil. É mister não esquecer de que o romantismo, além de fazer um chamado ao sentimento, é uma teoria que visa combater o Iluminismo e o Classicismo, voltados para a defesa dos valores que herdamos da Grécia. Nesse sentido, o Romantismo é um movimento reacionário que visa combater no plano intelectual as conquistas da razão e, no plano político, os avanços propiciados pela Revolução Francesa. Não à toa, é na loa de cavaleiros e damas, ou seja, de uma sociedade estamental, que se fiam os românticos e estabeleceram seu quinhão.

 

Foucault, como se sabe, é um pensador que vem ocupando os cimos do debate global há quase cinquenta anos. Suas relações com o pensamento de Nietzsche são conhecidas. Ele empreende e realiza um programa nietzschiano, uma genealogia que visa mostrar como a razão, tão cantada pelos iluministas, se formou ao excluir a loucura, os pobres, os miseráveis etc. ; ou como a sociedade moderna criou redes de instituições para aprisionar os desviantes, sendo estas a verdadeira negação da liberdade tão defendida pelos herdeiros da revolução; afirma ainda que, por base da sociedade contemporânea, há a criação de modelos de desempenho de uma população, sendo aqueles que não alcançam as metas assinaladas, excluídos.

 

Como se vê, Foucault é um crítico dos desenvolvimentos do Ocidente no pós Revolução Francesa e, na raiz de suas preocupações, está uma verdadeira ontologia política do saber, entendido como fundamentalmente interessado e servo de relações de poder. Foucault é um niilista,  um cético, alguém desconfiado da herança iluminista do Ocidente. Colocou a ciência, verdadeiro medalhão do Ocidente, em uma encruzilhada, a partir da análise de ramos como psiquiatria, que foi mostrada como profundamente ligada a uma sociedade disciplinar; outras ciências, como demografia, criminologia, estatística etc., também fariam parte de um dispositivo de poder, destinado a criar sujeitos úteis economicamente e dóceis politicamente. Será Foucault um arauto das notícias falsas? Será que sua postura de desconfiança em relação à ciência efetivamente jogou água no moinho da extrema-direita, que se apropriou do clima gerado por suas posições para fazer valer um projeto de destruição da modernidade? McIntyre  e D’Ancona respondem que sim. Vejamos de perto as posições de Foucault sobre a verdade para ou asseverar essas posições ou encetar uma nova.

 

 Os Dois Conceitos de Verdade em Foucault:

 

Foucault trabalha com vários temas relativos à verdade. Aqui nos focaremos em alguns deles.

 

Em A verdade e as formas jurídicas, Foucault se propõe a estudar como campos e sujeitos do saber podem nascer de práticas sociais: “O sujeito de conhecimento tem, ele mesmo, uma história, a relação do sujeito com o objeto, ou mais claramente, a verdade ela mesma tem uma história”.  Aqui ele parece subscrever uma noção da verdade como adequação do sujeito com o objeto. Ao mesmo tempo, ele aponta que a verdade é histórica; ou seja, ela não está nas coisas nem no sujeito, mas na relação entre ambos.

 

Ele fala, nesse mesmo texto, de duas histórias da verdade que se poderia traçar. A primeira seria uma história interna da verdade “que se corrige a partir de seus próprios princípios”. A outra seria uma história externa da verdade, mostrando os seus locais de nascimento e suas relações com sujeitos e domínios de saber, que devem ser analisados em uma grade histórica e política. Daí o privilégio que dará, na sequência do texto, às práticas jurídicas as quais, como é sabido, dedicam-se precisamente a estabelecer a verdade dos fatos, culpados e inocentes.

 

No curso de 1973-74, O poder psiquiátrico, Foucault segue com a tese já exposta em A verdade e as formas jurídicas, segundo a qual a verdade é produzida e datada; a verdade é um invento político dos homens em luta. No referido curso, há um esboço de uma teoria das tecnologias políticas da verdade, já iniciado em outras obras e prosseguido em outras tantas, mas nunca sistematizado.

 

A propósito das tecnologias psiquiátricas de extração da verdade (como a anamnese e o interrogatório clínico), observa-se como o Ocidente viu, até hoje, duas grandes tecnologias políticas de extração da verdade, oriundas ou realizadas em diversas técnicas distintas em áreas também díspares: verdade-acontecimento e verdade-demonstração.

 

Primeira grande tecnologia política da verdade, a verdade-acontecimento é antiquíssima no Ocidente. Trata-se de entender a verdade como não-universal, descontínua, que depende da ocasião (kairós, em grego) para se mostrar e que somente se deixa ver por alguns operadores privilegiados, que sabem quando, aonde e por quais meios a buscar. Toda prática judiciária da Idade Média — fundada na disputa, seja entre os litigantes, seja entre réu e juiz — e toda a prática alquímica — lastreada na iniciação nos rituais que fazem a verdade brilhar — baseavam-se nesta forma de verdade.

 

Mas a medicina foi a área onde, por mais de vinte e dois séculos, a verdade-acontecimento foi central. É que era em torno da noção de crise que todo o conhecimento e toda a prática médica se orientavam. A crise é o momento no qual corpo e morbidez se enfrentam e esta se mostra na sua realidade, em sua verdade. A crise é a ocasião na qual o médico deve intervir, gerindo-a, buscando fazer com que as forças da natureza triunfem sobre aquelas da doença. É a própria crise, em seu eclodir, que diz, portanto, como, quando e onde deve o médico intervir para salvaguardar a saúde do paciente.

 

A outra grande tecnologia política da verdade é aquela da ciência moderna, a verdade-demonstração. Para esta, cada coisa do mundo guarda uma verdade, bastando que se utilizem os instrumentos adequados, na posição certa, para que a verdade seja descoberta. Todos podem ter acesso à verdade-demonstração, porque ela é universal, direito de todos; o único requisito para acessá-la e exprimi-la é a qualificação e os instrumentos adequados.

 

A verdade-demonstração emerge com força decisiva no Renascimento que pode, aliás, “ser definido em grande parte como o desenvolvimento, o florescimento do inquérito como forma geral de saber” (FOUCAULT, 2006); o inquérito é uma das formas centrais da verdade-demonstração. Se esta surge de procedimentos administrativo-espirituais católicos de inquérito (que Foucault expõe com detalhes em A verdade e as formas jurídicas), este se torna uma de suas técnicas mais bem sucedidas seja em termos epistêmicos (a botânica, a geografia etc. se valem deste método) seja politicamente, tanto nas formas medievais do inquérito fiscal seja nas contemporâneas formas do inquérito policial. Trata-se da coleta de provas empíricas, de seu levantamento, da formulação de hipóteses, de seu cotejamento com outras provas, testemunhos e hipóteses, etc.

 

Desde os confins da Idade Média, esta forma de verdade desenvolveu-se até tornar-se um dos instrumentos políticos centrais das relações de poder contemporâneas:

 

o inquérito, o relatório, o testemunho de muitos, o cruzamento das informações, a circulação do saber desde o centro do poder até seu ponto de chegada e seu retorno, todas as instituições paralelas de verificação também, tudo isto constituiu-se (...) ao longo de toda uma história, o instrumento de um poder político e econômico que é o da sociedade industrial.

 

Portanto, Foucault desvela as duas grandes séries de tecnologias de extração da verdade na história do Ocidente: verdade-demonstração e verdade-acontecimento. Verdade-demonstração: universal, constante demonstrável a partir de métodos estabelecidos entre sujeito e objeto, buscando produzir conhecimento. Verdade-acontecimento: descontínua, deve ser provocada para mostrar-se; ela não requer métodos, mas estratégias para dar-se; seu objetivo não é conhecer, mas dominar, vencer. 

 

Essa temática não pode ser desligada das colocações que Foucault faz, em A ordem do discurso, sobre uma vontade de verdade, que teria surgido nas disputas entre sofistas e socráticos na Atenas clássica. Para os sofistas, conforme apontado, a verdade é relativa, ela é um dom do discurso. Já Platão defende um conceito realista de verdade. Desde então, os discursos passaram a ser divididos entre verdadeiros e falsos, e esta vontade polimorfa de verdade se enraizou no Ocidente, especialmente porque se apoia em determinadas instituições.

 


Outro conceito de verdade é dado por Foucault em uma entrevista, feita em 1977 por Alexandre Fontana. Nela, o filósofo francês diz o seguinte:

 

Por verdade, entender um conjunto de procedimentos organizados para a produção, a lei, a repartição, a colocação em circulação e o funcionamento dos enunciados; a verdade é ligada circularmente aos sistemas de poder que a produzem e a sustentam, e aos feitos de poder que ela induz e a reconduzem. Regime de verdade; este regime não é simplesmente ideológico ou superestrutural; ele foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo. E é ele que, sob reserva de algumas modificações, funciona na maior parte dos países socialistas. [...] O problema político essencial para o intelectual, não é criticar os conteúdos ideológicos que seriam ligados à ciência, ou de fazer de modo que sua prática científica esteja acompanhada de uma ideologia justa. Mas de saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a consciência das pessoas ou que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade. Não se trata de liberar a verdade de todo sistema de poder — isto seria uma quimera, posto que a verdade é ela mesma poder — mas de destacar o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais por ora ela funciona. A questão política, em suma, não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a verdade ela mesma. Disto a importância de Nietzsche.

 

Vê-se, pois, que Foucault politiza a verdade. Ele fala de um regime de verdade que funciona tanto no leste quanto no oeste e que esse regime está destinado fundamentalmente a dominar. A verdade, seja nos países socialistas seja nos capitalistas, exerce funções de controle político. E mais: a verdade é, ela mesma, uma relação de poder. Não é mister querer alterar isto, o que seria um contrassenso analítico, mas se empenhar para criar um novo regime de verdade onde ela já não esteja ligada aos poderes que a vem sustentando, mas, sim, a posturas novas. Foucault está propondo, portanto, uma terceira via. Fá-lo à maneira de Heidegger, um criptonazifascista, ou possui Foucault alguma outra coisa em mente? Foucault é, com essa posição, inspirador das notícias falsas ou ele apenas está descrevendo o que via? Duas questões com as quais fechamos nosso contributo.

 

 

A teoria da verdade em Foucault explica bem as notícias falsas. Se a verdade é uma função do discurso ligada a efeitos políticos, não é de se estranhar que distintos discursos, independentemente de suas correspondências aos fatos, podem cumprir o papel de verdade, isto é, orientarem a ação. Certamente com essa posição, o debate muda de rumo. Foucault, não custa lembrar, está analisando as condições de verdade de um discurso, o que o torna passível de ser compreendido enquanto verdadeiro. Ele aponta as formas como se percebe um discurso como verdadeiro, em uma história externa da verdade, como apontado acima; não é seu fito, pois, mostrar onde um pensador errou, mas, sim, as condições que permitiram que seu discurso fosse entendido como verdadeiro. Nesse sentido, sua teoria abriu caminho para a pós-verdade, para a relativização da verdade enquanto valor sagrado, objetivo das ciências.

 


Por outro lado, Foucault tinha em mente outro gênero de verdade quando escreveu seus livros. As principais análises que fez em torno da temática envolviam algumas ciências específicas: a psiquiatria, a medicina, a psicanálise e a psicologia, a criminologia, a sociologia e a história, a ciência e filosofia políticas. Ele não se enveredou nas ciências duras e admite que escolheu a psiquiatria por essa ser uma ciência mais frágil. Ele estava em luta não contra a verdade das ciências físicas — por exemplo, de que a terra é redonda —, mas contra aquelas com um forte viés humanístico, que são, no fim das contas, como que estratégias que moldam o ambiente social. Assim, McIntyre tem razão ao apontar que as teorias dos pensadores da estirpe de Foucault, o assim chamado pós-estruturalismo, no qual ele é geralmente incluído (mesmo que a contragosto, por exemplo, por PETERS, foram capturadas e orientadas contra seus próprios objetivos. Quais seriam estes?

 

No caso de Foucault, especificamente, não havia um compromisso nem com as sociedades liberais ocidentais, nem com o socialismo soviético. Seria Foucault um arauto do neofascismo conservador como aponta Sarup (1993)? Esta proposição é risível. Foucault denuncia o fascismo e o pensamento conservador. Enquanto pensador do movimento LGBT e da luta feminista, além de prôneur do combate contra o racismo, a psiquiatria policial etc., ele era um homem de esquerda, preocupado com a liberação dos povos. Mas, com qual via Foucault se identifica? A modernidade criou poucas teorias políticas. As principais são liberalismo e socialismo (nas suas três grandes vias: comunismo marxista, social democracia e anarquismo), todas herdeiras do Iluminismo, e a grande variante anti-iluminista, o nazifascismo. Se Foucault descartava liberalismo e comunismo, e se escreve abertamente contra o fascismo, somente lhe restam duas vias, a socialdemocracia e o anarquismo. Particularmente, não vemos condições de assimilá-lo à social-democracia, regime contra o qual ele repetidas vezes se manifestou. Cremos que há uma veia anarquista em Foucault, seguindo uma via de interpretação contemporânea, não sem percalços, um dos quais, por exemplo, que ele mesmo se diferencia do anarquismo em alguns textos .

 


Essa dificuldade em assimilar Foucault a alguma das grandes teorias políticas se deve aos seus silêncios, ao fato de que ele analisa a formação das estratégias sem fornecer, ele mesmo, senão uma pura ética, já nos escritos finais de sua vida. Mas, em algumas passagens, ele comenta sua relação com o anarquismo. Para ser tomado como anarquista, é mister refundar tanto a teoria anarquista quanto aparar certas arestas do construto teórico foucaultiano.

 


Se utilizamos Foucault para explicar as notícias falsas, foi em parte porque ele abre o caminho para que elas apareçam. Por outro lado, ele captou os movimentos de forças que então se processavam e enxergou que a verdade, sempre cercada de loas, é uma arma perigosa. Quando as anti vacinas afirmam que possuem a verdade, veem-se os perigos que rondam a política construída em torno da afirmação de verdade, de grandes universais. Mas, como fazer política sem se referir à verdade? Impossível, ao que parece. A fórmula que Foucault nos legou foi outra: não abandonar a verdade, mas mudar a maneira pela qual ela é produzida. Com a genealogia, que buscava unir o saber erudito com as vozes dos desclassificados pelo discurso oficial à verdade é no plasmar de uma verdade construída pelos marginais da sociedade que Foucault depositava suas esperanças. Isto quer dizer que, por exemplo, são os usuários do SUS que devem formular as políticas de saúde em aliança com os médicos e gestores especialistas; que são os estudantes que devem pensar as regras de ensino; que são os que lutam por moradia que devem se enfeixar as regras de financiamento habitacional etc. Ou seja, no crivo foucaultiano, não são bilionários, pautados em seu dinheiro, beneficiários do sistema de formação de verdade, os que devem ditar as regras, sejam as da verdade oficial, seja da verdade subterrânea; ambas trabalham pelo sistema, uns propondo um novo modelo de dominação, outros se arvorando em defensores de uma sociedade caduca, geradores de miséria e desamparo. São aqueles que estão em baixo, em alianças com os eruditos — que fazem uma história a contrapelo, uma história das dominações e dos dominados, não a dos dominadores e suas vitórias — que devem escrever as novas verdades..

 


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Autor.:
 

Nilo Deyson Monteiro


FILÓSOFO, ESCRITOR & POETA - Acadêmico da Academia Pedralva Letras e Artes, ocupante da cadeira n°17 🖋🌿📚⚖ - pesquisador e colunista.
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