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Método arqueológico em filosofia


 

Reprodução e Divulgação


 

 “Foucault e Borges: Da Literatura ao Método Arqueológico”. 

 

 

Caro amigo leitor do portal Líderes, hoje trago um tema de grande relevância para ampliar sua dimensão de consciência e conhecimento, em Filosofia, trago Foucault e Borges, onde você terá uma leitura organizada, com referências em pesquisas.

Portanto, leiam e anotem para pesquisar. Boa leitura e ao final do artigo, um informativo.

 

O método arqueológico em filosofia foi descrito, principalmente, por Foucault em 1969, no livro Arqueologia do Saber. O método teve como ponto de partida a história das ideias, a qual é atribuída à tarefa de penetrar nas disciplinas existentes, tratá-las e reinterpretá-las – é a disciplina dos começos e dos fins, da descrição das continuidades obscuras e dos retornos, da reconstituição dos desenvolvimentos na forma linear da história. A descrição arqueológica, por sua vez, abandona os postulados e os procedimentos da história das ideias na tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram. Procura estabelecer a constituição dos saberes, ao privilegiar as interrelações discursivas e sua articulação com as instituições, na tentativa de responder a como os saberes se transformavam (AZEVEDO; RAMOS, 2003).

 

Este trabalho discursográfico, desta forma, apresenta algumas características do método empregado por Foucault, entre elas, a de que a arqueologia analisa os discursos eles mesmos, enquanto práticas que obedecem a regras. Ele é interpretado como monumento, não documento, reinventando a historiografia que até tal ponto era muito utilizada (Cf. Thiry-Cherques, 2010). A arqueologia tenta mostrar o jogo enquanto teias de relações, é uma análise diferencial dos discursos em suas modalidades descontínuas; ela acha as regras que regem os discursos enquanto práticas que atravessam os indivíduos, que os dominam e comandam. Este método não tenta achar o ponto cruz entre o autor e a obra, não busca reconstituição nem repetição discursiva; ele não quer encontrar a grandiosa origem das coisas e seus nomes, é uma sistematização do discurso-objeto.

 

Como Foucault mostra em sua aula inaugural no Collège de France (A Ordem do Discurso), pronunciada no início de dezembro de 1970, o seu método acarreta consigo algumas exigências, tais como o princípio de inversão (a busca pela rarefação do discursiva); de descontinuidade (o discurso deve ser tratado como práticas que se cruzam, mas podem se ignorar ou anular); de especificidade (o discurso deve ser concebido como uma violência às coisas); e de exterioridade (ver, a partir do próprio discurso, sua aparição e regularidade, passando, aí, à suas condições externas de possibilidade) (FOUCAULT, 2016).

 

O que o autor postula aqui, então, são as características de uma análise tautegórica (Schelling, SW, XI) que privilegia a interpretação internalista dos significados inscritos em tais sistemas simbólicos, tomados como dotados de autonomia e de inteligibilidade imanente, uma leitura por oposição à alegórica, que não pensa o discurso como algo de diferente dele mesmo – uma análise que tem em vista isolar a estrutura imanente a cada produção simbólica. Assim, Foucault tratou de distinguir as componentes de uma qualquer formação histórica de um dispositivo (o discurso é imanente aos factos históricos), para mostrar as ligações entre essas componentes e fazer surgir a singularidade do todo (VEYNE, 2009).

 

Deste modo, para Foucault (2007), o “sentido” não era mais do que um efeito da superfície, uma reverberação do que atravessa profundamente o “sistema”, este entendido como um conjunto de relações que se mantém e transforma independentemente das coisas que essas relações religam (Foucault, 2009). Em sua análise, ele conceitua o que chama de epistémê: um inconsciente de regras e leis que agem e configuram a si mesmas num campo de experiência possível dentro de um sistema, definindo numa cultura e num dado momento, as condições de possibilidade de todo saber (Foucault, 2007). Ou seja, segundo os saberes – que não são outra coisa senão formações históricas constituídas por práticas formais de enunciados e visibilidades – o sujeito é visto como sujeitado à ordem do discurso. Já no campo das relações de forças, a sujeição se redobra, tendo em vista que o poder que atua por estímulo, incitando forças, extraindo dos corpos ações úteis para o funcionamento do campo social.

 

Este arqueólogo das ciências humanas, assim, entende que no final do século XVIII um ponto de inflexão acerca do conhecimento (ocidental) ocorreu – os seres humanos passaram a ser interpretados como sujeitos e objetos do seu próprio conhecimento, concomitantemente. Ocorreram, subsequentemente neste fluxo, dois tipos de reações metodológicas à fenomenologia. A hermenêutica e o estruturalismo. Ambas procurando superar a divisão kantiana entre sujeito e objeto (Dreyfus; Rabinow, 1995). Além de ambas metodologias eliminarem tanto o próprio sujeito, quanto o seu sentido, e abolirem a noção de um sujeito transcendental doador de sentido, elas são diferentes.

 

Deste modo, a fenomenologia investiga, nas palavras de Dreyfus e Rabinow (1995), “a atividade doadora de sentido do ego transcendental, que dá sentido a todos os objetos incluindo seu próprio corpo, sua própria personalidade empírica, além da cultura e da história, que ‘estabelece’ como condicionando seu ser”. A abordagem hermenêutica deseja manter o sentido presente nos textos literários e nas práticas sociais dos homens – as ações, nesta metodologia, possuem significados em estado latente, que poderiam ser descobertos pela leitura interpretativa, mesmo estando ocultos aos agentes.

 

Dreyfus e Rabinow, ao acompanharem as estratégias analíticas desenvolvidas por Foucault, defendem que ele constantemente buscou ir além da hermenêutica e do estruturalismo. Este que se esforça para decompor os elementos básicos, regras ou leis que seriam responsáveis pelas ações humanas, investiga e esquadrinha as leis objetivas que governam as atividades humanas. Ao se afastar da análise estruturalista que desconsiderava totalmente a noção de sentido, Foucault a substituiu “por um modelo formal de comportamento humano que apresenta transformações, governadas por regras, de elementos sem significado” (DREYFUS; RABINOW, 1995).

 

Ele juntamente “tentou evitar o projeto fenomenológico de ligar todo o sentido à atividade de dar sentido de um sujeito autônomo e transcendental” (Ibidem), do mesmo modo buscou se desviar da “tentativa do comentário de ter o sentido implícito das práticas sociais, assim como o desvelar feito pela hermenêutica de um sentido diferente e mais profundo do qual os atores sociais têm uma vaga consciência” (Dreyfus; Rabinow, 1995). Como dito por Veyne (2009), Foucault se junta ao nominalismo espontâneo dos historiadores para contornar tanto quanto possível os universais antropológicos a fim de os interrogar na sua constituição histórica.

 

Desta maneira, para Foucault, as ciências humanas podem ser observadas como sistemas discurso, que nas suas práticas as instituições sociais podem exercer influência. Recomenda-se, para tal, investigar os discursos sem tocar no debate se estes são, ou não, Verdade. Como outra proposição, ele diz ser preferível tratar o que é enunciada como uma espécie de “discurso-objeto”. Tratar-se, desse modo, de uma teoria de um discurso “ortogonal a todas as disciplinas, com seus conceitos aceitos, sujeitos legitimados, objetos inquestionados e estratégias preferidas que produzem afirmativas justificada de verdade” (DREYFUS; RABINOW, 1995).

 

Segundo Gonçalves (2009), o percurso das reflexões de Foucault não se encerra com a arqueologia das práticas discursivas. Bem pelo contrário, ela é ponto de partida para outra parte importante de sua obra: aquela que trata de questões referentes ao poder e à auto-subjetivação. Em Dreyfus e Rabinow (passim), há três momentos distinguíveis na obra foucaultiana: 

 

1) onde há o predomínio da linguagem, é perceptível uma tentativa de superação do estruturalismo e da hermenêutica; 

2) onde suas reflexões sobre o poder redundariam o corpo como o lugar de práticas sociais ligadas às macros organizações de poder; e 

3) onde se apresenta a temática do sujeito em sua auto-subjetivação.

 

Voltando à arqueologia, em As Palavras e as Coisas, Foucault, criticando Kant, elimina a noção transcendental do sujeito (Dekens, 2011). Uma marca recebida do método estruturalista. Como dito por Ricoeur (cf. 1963), a antropologia de Lévi-Strauss é kantismo sem sujeito transcendental. E não é sem razão que, em seu último ano de vida, Foucault (ou François Ewald, seu assistente que parece ter sido o verdadeiro autor da frase) diz: “se Foucault se inscreve na tradição filosófica, é então na tradição crítica de Kant que podemos situá-lo, no projeto de uma história crítica de nosso pensamento” [3] (FOUCAULT, 2001 apud. ALVEZ, 2016).

 

Tal como feito por Lévi Strauss (2008) – que retomou Merleau-Ponty e trabalhou os mitos como uma estrutura tripartite do pensar sobre o fenômeno, isto é, caracterizá-los no âmbito da fala (a ser analisado enquanto tal), da língua (na qual é formulado) e da linguística (o caráter absoluto do mito que o distingue dos outros dois aspectos) – Foucault, fazendo com o discurso o que foi feito com o mito – que “é tautegórico, diz o que diz e da forma que diz como única maneira possível de tratar a realidade, sem poder dizer de outra maneira” (Azevedo, 2014) – percebe que a “substância” destes se encontram em suas histórias: é uma linguagem trabalhada em nível elevado, descolada do fundamento na qual rodou.

 

Neste sentido, tanto a Crítica da Razão Pura, quanto As Palavras e as Coisas, são reflexões sobre o conhecimento. A arqueologia faz, assim, a historicização do kantianismo atribuindo às palavras uma configuração histórica específica e analisando os discursos nas suas relações. Neste sentido, os elementos (unidades constitutivas) dos discursos possuem significância quando entram em composição e quando se relacionam, pertencendo à uma ordem específica (mais complexa) da linguagem, que deve ser buscada acima do nível ordinário da vida social.

 

Se antes a crítica identificava as limitações da razão humana, com Foucault ela se abre à transgressão: uma outra forma de pensar pode emergir. Os limites já não são universais e necessários, eles estão sempre abertos às alterações. Desta forma, As Palavras e as Coisas (2007) se inicia afirmando que o livro teria nascido de um texto de Jorge L. Borges. Foucault afirma que Borges o teria feito rir durante muito tempo, “mas não sem um mal-estar evidente e difícil de ser superado” (Foucault, 2007). Em O idioma analítico de John Wilkins, Borges apresentou à Foucault uma velha enciclopédia chinesa na qual os animais são divididos em 14 categorias:

 

a) pertencentes ao imperador, 

b) embalsamados, 

c) domesticados, 

d) leitões, 

e) sereias, 

f) fabulosos, 

g) cães em liberdade,

h) incluídos na presente classificação,

i) que se agitam como loucos, 

j) inumeráveis,

k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, 

l) et cetera, 

m) que acabam de quebrar a bilha, 

n) que de longe parecem mosca (BORGES, apud. FOUCAULT, 2007).

 

O que se coloca neste prefácio é a questão de como organizar as coisas. Na arqueologia, onde analisam-se os discursos para além da noção de verdade, pode-se pensar esta categorização longe da noção de absurdo, mas como possibilidade transgressora. Como dito por Foucault, expondo o hiato entre o discurso e a realidade:

 

ali, a monstruosidade não altera nenhum corpo real, em nada modifica o bestiário da imaginação [...] o que transgride toda imaginação, todo pensamento possível, é simplesmente a série alfabética (FOUCAULT, 2007).

 

O conto de Borges, ao provocar riso e mal-estar, aponta para outra “ordem das coisas”, para outras maneiras de pensar, para esses outros lugares e esses “homens outros” (Alvez, 2016). Acerca das monstruosidades, disse Foucault, “o impossível não é a vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se” (Foucault, 2007). Contudo, quando se anuncia a onda que vem por levar o homem, a total transgressão da ordem das coisas e o descolamento dos discursos do nível ordinário da vida, explode-se o sentido de natureza, pois ela nada mais seria uma categoria organizadora do saber, pronta a ser questionada: “seria a desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria” (IBIDEM).

 

A natureza seria, desta maneira, mais do que um conceito científico, um “indicador epistemológico” que permitiria perceber que, entre as mais diversas áreas do saber empírico (a linguística, a etnologia, a psicanálise, entre outras), haveria certa coerência ao perceber um campo mais amplo ao qual ele denominou o saber de uma determinada cultura, fora do qual não faria sentido nenhum falar numa natureza (Souto, 2014). A estrutura intrínseca à natureza se esvaece, ela não mais é deduzida do plano do universal (transcendental, no vocabulário kantiano), uma vez que o nível da universalidade só é passível de ser aferido como parte do índice dos diversos discursos que uma dada sociedade produz.

 

A arqueologia de As Palavras e as Coisas (1966), e sobretudo de A Arqueologia do Saber (1969), possibilitou uma nova série de pesquisas acerca de nós mesmos. As organizações nas quais determinados conteúdos empíricos podem se prestar são próprios à ordem discursiva, e isto se deve a uma disposição socialmente constituída, cuja formação na história caberia analisar. Um exemplo desta problemática é a noção de justiça, que tão claramente Foucault debateu com Chomsky. Cito:

 

a ideia de justiça em si é uma ideia que, na verdade, foi inventada e posta em circulação em diferentes tipos de sociedade como um instrumento de determinado poder político e econômico ou como uma arma contra esse poder (CHOMSKY; FOUCAULT, 2014, apud. SOUTO, 2014).

 

Longe de se querer debater, aqui, Justiça, o que se salta aos olhos metodológicos é como o problema é analisado – a noção de justiça é tomada como algo inventado em uma determinada sociedade. O mesmo, então, ocorreria com as demais noções. Como pronunciado por Foucault, “as heterotopias (encontradas tão frequentemente em Borges) dessecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias” (FOUCAULT, 2007). Diluídas as categorias, a desordem analítica seria instaurada ou seria uma transgressão que, pela ausência de lei e geometria, abria inúmeras possibilidades ordenadoras? Como por ele mesmo perguntado:

 

Em que “tábua”, segundo qual espaço de identidades, de similitudes, de analogias, adquirimos o hábito de distribuir tantas coisas diferentes e parecidas? Que coerência é essa — que se vê logo não ser nem determinada por um encadeamento a priori e necessário, nem imposta por conteúdos imediatamente sensíveis? Pois não se trata de ligar consequências, mas sim de aproximar e isolar, de analisar, ajustar e encaixar conteúdos concretos; nada mais tateante, nada mais empírico (ao menos na aparência) que a instauração de uma ordem entre as coisas (FOUCAULT, 2007).

 

Foucault e Borges – Literatura e Transgressão.

 

A obra de Foucault veio, como no supracitado, abrir o campo de questionamento das similitudes e analogias que separariam os diferentes e aparentados; da ordem e da lei que marcam a natureza e a cultura, o verdadeiro e o falso, o louco e o racional etc. Pode-se agora transgredir a ordem que instaura o solo positivo onde as coisas poderão se avizinhar e serem classificadas. Não é gratuito que Foucault, então, tenha escolhido Borges para ser seu referencial estético na abertura de As Palavras e as Coisas. Como dito por Gomes Jr. (1991), a literatura de Borges é um comentário sobre a própria literatura, cito: “o sentido está contido nos livros e o seu universo é sempre superior ao da experiência”, isto é, mantem-se aqui a mesma lógica apresentada por Lévi-Strauss e tomada no método arqueológico de Foucault.

 

Para Borges (1974) “o mundo existe para acabar em livro”: o arquivo, a palavra e o nome são as coisas últimas, únicas, que podem ser analisadas. Têm-se a ideia de que na Biblioteca de Babel sempre se busca um sentido na desordem dos livros, é no conjunto de elementos heterogêneos que se estabelece um conjunto de relações que possibilita aquilo que se mostrará como sentido. Deduz-se que a “biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações” (Borges, 1974) – entra-se, então, no campo ordenativo. Cito Gomes Jr. (1991) acerca da Biblioteca de Babel: “é como que tudo o que se imaginou, se passou, ou se passará, pudesse estar descrito e narrado através das linguagens”.

 

Todas os vetores de força e poder, todas os enunciados de saber, todas as possibilidades estão dentro de um mesmo conjunto tautegórico de possibilidades: tudo se estabelece dentro da relação saber-poder, mesmo sua própria negação e resistência. É desta maneira que pensaria Borges, operador estético de Foucault. Como dito por Gomes Jr. (1991), “Borges toma como pressuposto o limite máximo dessa formulação [o arranjo e suas regras]; no lugar de combinações regradas e limitadas, propõe logo a ideia de todas as combinações possíveis”. Afirma-se, então, que a interrogação filosófica é mais um jogo dentro das infinitas possibilidades postas pela literatura – expressa-se, assim, uma das marcas mais proeminentes do pós-estruturalismo: a estetização máxima da obra filosófica, agora feita à moda de ensaios.

 

Tal como na obra de Foucault, em Borges não há relação de exterioridade ou antecedência entre ordem e caos. É graças aos processos conflitivos de organização dos diversos elementos linguísticos heterogêneos que se estabelece o registro imanente do pensamento aqui expresso. Na biblioteca, assim como nos diversos enunciados e discursos, não existem dois livros iguais, todos eles são estritamente singulares, únicos, valendo mais a prática de relacionar os diversos signos, estes que apresentam “valor próprio, um conteúdo independente que se combina com a função significante para modular” (Lévi-Strauss, 2008). Ora, assíduo leitor de Saussure e introdutor da linguística na antropologia, quem poderia ter pensado Borges da seguinte maneira é Lévi-Strauss: “a linguagem e a biblioteca. Ambas prefiguram a ordem dotada de sentido que serve à comunicação. A primeira com suas regras fonológicas, sintáticas, semânticas; a segunda com suas tábuas classificatórias que dividem o pensamento humano” (GOMES JR., 1991).

 

Tal como na obra de Foucault, em Borges não há relação de exterioridade ou antecedência entre ordem e caos. É graças aos processos conflitivos de organização dos diversos elementos linguísticos heterogêneos que se estabelece o registro imanente do pensamento aqui expresso. Na biblioteca, assim como nos diversos enunciados e discursos, não existem dois livros iguais, todos eles são estritamente singulares, únicos, valendo mais a prática de relacionar os diversos signos, estes que apresentam “valor próprio, um conteúdo independente que se combina com a função significante para modular” (Lévi-Strauss, 2008). Ora, assíduo leitor de Saussure e introdutor da linguística na antropologia, quem poderia ter pensado Borges da seguinte maneira é Lévi-Strauss: “a linguagem e a biblioteca. Ambas prefiguram a ordem dotada de sentido que serve à comunicação. A primeira com suas regras fonológicas, sintáticas, semânticas; a segunda com suas tábuas classificatórias que dividem o pensamento humano” (GOMES JR., 1991).

 

Como acima apresentado, estabelece-se em Borges uma relação entre a literatura e o jogo, em que a primeira é encarada como um jogo de variações feitas com seu conjunto de termos. É possível, então, pensar uma analogia entre a literatura de Borges e ao universo mitológico, onde tem-se um universo de suspensão das autorias. O mito é um gênero de autoria inexistente, que se perde na ordem do tempo. Segundo Borges (1974), a literatura é pensada como “o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases” – assim como o mito (ou a épistèmé), a literatura borgiana é um intercalar de signos enfatizados. Como apontado por Barthes (1982) é “ao mesmo tempo objeto e olhar sobre esse objeto, fala e fala dessa fala, literatura objeto e metaliteratura”.

 

Não é possível refletir sobre tais questões sem lançar mão da obra de Foucault, que nos apresenta sua morte do autor, que produz discursos sobre discursos etc. Não é um assombro ele ter encontrando seu paraíso mental na obra de Borges. Como dito por Menezes (2008), não é raro ao longo da obra de Foucault que, em muitos de seus ditos e escritos, ele faça referência à literatura, ao problema da linguagem e a noção de ficção. Notória é a declaração sobre seu próprio trabalho:

 

...] as pessoas que me leem, em particular aquelas que apreciam o que eu faço, me dizem sempre rindo: “No fundo você sabe bem que o que você diz não é senão ficção”. Eu respondo sempre: “Claro, não há problema que isto seja outra coisa senão ficções” (FOUCAULT, 1994).

 

A relação de Foucault com a leitura se coloca, então, em sua boca na entrevista dada ao jornal Le Monde, anos depois da citação de Borges, na qual ressurge em suas palavras o estatuto da literatura na sua obra:

 

Para mim a literatura era algo a ser observado e não analisado ou reduzido ou integrado ao campo de análise. Era um descanso, um pensamento a caminho [...] no meu livro sobre Raymond Roussel e depois no livro sobre Pierre Rivière. Em ambos se coloca a mesma questão: qual é o limite do qual um discurso (quer seja do doente do criminoso etc.) começa a funcionar no campo conhecido com literatura? (FOUCAULT, 1986).

 

A experiência foucaultiana do paradoxo em relação às palavras e as coisas, corresponde um paralelo da experimentação borgiana, em torno dos volumes do espaço e do tempo em relação à construção do conceito de épistèmé (Menezes, 2008). Ou ainda, aquilo que se coloca as condições de possibilidade do pensar na superfície da linguagem, como uma fimbria que distingue no regime dos enunciados aquilo que seria ficção. Para Foucault “toda a “ficção” consiste no movimento pelo qual um personagem se desvencilha da fábula a qual pertence e torna-se narrador da fábula seguinte” (FOUCAULT, 1994).

 

Desta forma, para Foucault:

 

Fabula é o que é contado (episódios, personagens, funções que exercem na narração, acontecimentos). Ficção é o regime da narração, ou, melhor, os diversos regimes segundo os mais ela é narrada (...) A ficção é a trama das relações estabelecidas, através do próprio discurso, entre este que fala e este o qual ele fala. Ficção aspecto da fábula (...) A fábula de uma narração que habita o interior das possibilidades míticas da cultura; sua escritura habita no interior das possibilidades da linguagem; sua ficção no interior das possibilidades do ato da palavra (FOUCAULT, 1994).

 

O que se corta com essa alquimia Foucault-Borges são as psicoleituras, isto é, lê-se a obra fora da esfera pessoal do autor. Para eles, a obra é o ponto de partida, não de chegada da análise – ela é o campo privilegiado de investigação. É no jogo da literatura e sua linguagem que se inverte a abordagem psicanalítica, pois é nas primeiras que se dá a variedade de possibilidades. No que se refere a tradição literária, esta é tomada em si mesma, independente dos sujeitos no que diz respeito ao desenvolvimento dos gêneros, temas, metáforas e outras estratégias literárias. Tal como feito por Lévi-Strauss, acentua-se com isso o afastamento do mito daquele que o produziu, isto é, abandona-se o sujeito; como dito pelo autor: “aceitamos, pois, a qualificação de esteta, por acreditarmos que a última finalidade das ciências humanas não é constituir o homem, mas dissolvê-lo” (LÉVI-STRAUSS apud. WERNECK, 2002).

 

O fracasso da projeção da esfera individual, em seu mito psicanalítico e expressão pessoal com partida para análise dos documentos e discursos, então, reside na impossibilidade de traçar o caminho de volta em direção ao futuro, ao encontro da diversidade (Gomes Jr., 1991, p. 127). Isto é, esse esquema fecharia a abertura para possibilidades, dado que os resíduos do inconsciente já indicariam todas as pistas do núcleo original do texto ele mesmo – coisa que, aparentemente, parece ser veementemente abandonado por Foucault-Borges. Tem-se de pensar a obra dentro do seu sistema de relações da história do pensamento, dentro do conjunto de outros enunciados que determinam seu campo de possibilidades de existência presente.

 

É com a já exposta leitura de Borges feita por Foucault que pôde-se ver como ambos os autores vão ao extremo limite da ruptura com a “tópica coletiva, com a tradução calcada nos gêneros” (Gomes Jr., p. 130). O que se quer expor com esse momento é a capacidade classificativa, é a primazia e importância de como se dará a ordem das cosias, e, consequentemente, como Foucault leitor de Borges vai pouco a pouco, ao inventar outras tramas e relações para o discurso, destroçando a ordem da classificação literária por se aproximar daquilo que não convém, expondo a separação daquilo que deveria estar aproximo e criando espaços (in)congruentes entre as mais diversas unidades nominativas – há de se lembrar, como já apontado, a leitura de Paul Veyne que o coloca como um autor nominalista.

 

Desta maneira, dada a estetização máxima do pensamento e discurso filosófico como meio para a possibilidade transgressora e criativa, e pela base da ficção feita por Borges, é possível considerar a técnica de leitura e de escritura que eles apresentam como uma fuga para se repensar o mundo e a Literatura. Na realidade, se um texto está sempre face a face com ele mesmo, pode-se dizer, tal como apontado por Sabot (2013), que o mesmo se passa na tangente de sua relação com outros textos – cada livro contém em si o labirinto de uma biblioteca. A Literatura, e todo conjunto de palavras e discursos, deve, assim, ser pensada como um único texto, infinitamente variado, modulado e transformado, sem que um único de seus estados possa ser isolado e fixado definitivamente.

 

O que se tem aqui é uma filosofia da relação em que “nos propomos (...) definir cada mito pelo conjunto de todas suas versões” (Lévi-Strauss, 2008), isto é, a Literatura, a biblioteca e seus textos infinitos, devem ser analisados em seu conjunto total: todos os discursos devem ser dispostos horizontalmente e vistos em todas suas versões. Para compreender os mitos, e agora a Literatura, é necessário, então, captá-los em seu movimento, não importando a forma sob a qual eles se apresentam: estilhaçados ou fragmentados – o universo mítico-literário esta sempre em permanente mutação. Do mesmo modo, quando um elemento se transforma, os outros se adaptam à mudança sofrida pelo primeiro e, por sua vez, também se modificam. Isto é, os mitos se modificam a si mesmos, sua mudança opera por contagio, uma influenciando a outra. Como apontado por Werneck (2002), acerca do funcionamento dos mitos: eles operam como caleidoscópios. E é neste ponto que Foucault e Borges vão operar.

 

Isto posto, Barthes vai retomar, então, esta perspectiva de uma mobilidade e de uma plasticidade textuais inerentes à prática da escritura literária:

 

…] um texto não é feito de uma linha de palavras, emanando um sentido único, de alguma forma teológico (que seria a « mensagem » do Autor-Deus), mas um espaço com dimensões múltiplas onde se combinam e se contestam escrituras variadas, não sendo nenhuma original: o texto é um tecido de citações, oriundas de mil centros da cultura. Parecido à Bouvard et Pécuchet, esses eternos copistas, sublimes e cômicos ao mesmo tempo, e cujo profundo ridículo designa precisamente a verdade da escritura, o escritor pode tão somente imitar um gesto sempre anterior, jamais original (BARTHES, 2002).

 

Tais análises misturam-se às contribuições de Foucault e de Borges a partir de um questionamento comum que gira finalmente ao redor da noção de obra, onde se pode pensar o “literário” ou o “filosófico” na medida em que se desenvolvem e transformam nos seus modos de permanente reavaliação. O “literário” e o “filosófico”, assim considerados, referem-se a um complexo de processos, articulando entre estes, de maneira dinâmica, e movimentos incessantemente negadores da ilusão de uma identidade, estabilidade ou permanência dos supracitados. É, sem dúvida, uma condição dinâmica transformadora de invenção e reinvenção permanentes, que literatura e filosofia, não somente se comunicam entre elas, mas se praticam em conjunto, sem exclusividade e sem limites (SABOT, 2013).

 

Dado o supracitado, pode-se ver como a Literatura se apresenta como parte constitutiva do método arqueológico de Michel Foucault. A dialogização entre Lévi-Strauss e a obra de Borges, operador estético – ferramenta de pensar; métodos e técnicas apropriados e transformados em modus operandi do método – que funciona, ao mesmo tempo, como uma espécie de iconografia desse pensamento, abre diversas possibilidades, não só analíticas para a leitura da obra de Foucault, mas também para transformações efetivas da realidade. A possibilidade de pensar organizações transgressoras do mundo é o que esta chave de pensamento abre para os leitores mais atentos da realidade.

 

Para Geertz (2008), fundador da antropologia hermenêutica, nossa cultura deve ser interpretada em seus fenômenos como texto, traçando uma curva do discurso social; é numa semântica social que se pode examinar a cultura, onde homem se torna um animal amarrado à teia de significados que ele mesmo teceu, sendo a cultura essas teias e a sua análise. Por reverberações fenomenológicas em sua obra, introduz-se a ideia do indivíduo-leitor, afirmando que os fenômenos sociais podem ser lidos pelos próprios membros da sociedade: o sujeito deve interpretar ativamente aquilo que vê. Quando se olha para a cultura como um conjunto de textos a serem interpretados, a textualização se dá como pré-requisito à interpretação.

 

Pode-se, assim, numa aventureira intersecção entre Geertz-Foucault-Borges, pensar o mundo cultural ele mesmo como texto, como Literatura, em que seus diversos fonemas, signos etc. podem ser dispersos horizontalmente, a fim de serem interpretados, lidos, analisados e relacionados entre si num movimento compreensivo de como são hoje dispostos, mas também de como poderiam o ser diferencialmente. Como anteriormente apontado por Dreyfus e Rabinow, a tradição da fenomenologia, cara a Geertz, investiga a atividade atribuidora de sentido aos diversos objetos, buscando o sentido dos textos literários, contudo, Foucault não a rejeita completamente, mas a busca superar.

 

No mais, cabe, agora vista as influências borgianas no método arqueológico, repensar a hermenêutica diferencialmente, isto é, ver a realidade como este texto literário à moda da transgressão possibilidade pelo processo relacional acima exposto. Se, tal como dito por Borges, o mundo acaba em livro, e é exatamente a partir desse ponto que o projeto relacional de Foucault sobre a épistèmé se dá, quais seriam então as possibilidades outras se virmos a cultura ela mesma como texto, entretanto, feito tal como pensado pela arqueologia? Questionamento aventureiro que há de se ficar para um outro texto.

 

Enfim, além de você, amigo leitor, agora poder pesquisar nas fontes que citamos nos autos, também podem pesquisar outros artigos de minha autoria ao seguirem as páginas do Facebook: 

Colunista Nilo Deyson Monteiro Pessanha,

&

Filósofo Nilo Deyson Monteiro Pessanha.


Boa Leitura!



Autor.:

 

Nilo Deyson Monteiro


FILÓSOFO, ESCRITOR & POETA - Acadêmico da Academia Pedralva Letras e Artes, ocupante da cadeira n°17 🖋🌿📚⚖ - pesquisador e colunista.
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